sábado, 3 de fevereiro de 2024

Cenas Populares, de Juvenal Galeno - RESENHA #205

A origem do conto cearense pode dividir opiniões, seja pela velha questão da diferença entre “conto” e “novela”, como também pelas circunstâncias de publicação. Há quem considere José de Alencar um precursor, por narrativas curtas como Cinco Minutos (1856) e A Viuvinha (1860). Em seguida, temos Franklin Távora, que publicou as histórias que formam A Trindade Maldita em 1862. Contos Brasileiros (1868), de Araripe Júnior, também entra na disputa. Mas é Juvenal Galeno, com suas Cenas Populares (1871), quem mais merece o título de precursor.

José de Alencar, o grande romancista, pouco se dedicou à produção de narrativas curtas. Acredito que apenas dois textos seus atendem aos critérios do que entendemos hoje por “conto”: o panfleto satírico “A corte do leão” (1867) e “Lembra-te de mim” (1872), que saiu no livro Noturnos, de Luís Guimarães Júnior. Cinco Minutos e A Viuvinha, na condição de obras mais extensas, não podem ser consideradas contos.

A Trindade Maldita, de Franklin Távora, por sua vez, obedece ao formato de “narrativa-moldura”, à maneira de Noite na Taverna, de Álvares de Azevedo, sua principal influência. Esse tipo de narrativa está mais para uma novela, embora, de fato, as histórias contidas na “moldura” possam ser entendidas isoladamente. Quanto aos Contos Brasileiros, de Araripe Júnior, a situação chega a ser engraçada, uma vez que o título é um tanto enganoso, sugerindo um compilado de histórias curtas, mas entregando na verdade uma novela, “Tabira”, seguida de um único conto: “Jaguaraçu e Saí”.

É Juvenal Galeno quem, portanto, apresenta a primeira coletânea de contos no formato que se utiliza até hoje, reunindo oito narrativas curtas no volume Cenas Populares. Se lembrarmos que as demais obras acima mencionadas foram publicadas por seus autores fora do Ceará, maior mérito atribuiremos a Galeno enquanto pioneiro do conto cearense.

Como ocorre à maioria dessas obras iniciadoras de um segmento literário, Cenas Populares é um trabalho de pouca excelência. Aqui o gênero “conto” está em processo de formação, e seu autor experimenta várias fórmulas na tentativa de encontrar o modelo mais azado aos seus fins estilísticos.

“Os pescadores” nos introduz a essa experiência tão inovadora para o poeta cearense. É possível que os contos de Galeno estejam dispostos em ordem cronológica de escrita, pois esta primeira história é notadamente marcada pela poesia, gênero que imortalizou o autor das Lendas e Canções Populares. “Os pescadores” não possui um enredo convencional; nele temos personagens e costumes sendo descritos, de tal forma a criar um quadro contemplativo para apreciação do leitor, como um longo poema em prosa.

“Dia de feira” segue por caminho semelhante. Deixamos o litoral cearense e seguimos para a Serra da Aratanha, onde o autor nos leva a contemplar um “dia de feira” no centro de Pacatuba. O autor experimenta, contudo, um modelo diferente, dividindo o texto em três partes principais: a primeira segue o mesmo estilo poético da narrativa anterior; a segunda se concentra num casal de agricultores, apresentando uma narrativa isolada, com começo, meio e fim, e que, por si só, renderia um conto; a terceira traz um relato histórico sobre a Serra da Aratanha e da então vila de Pacatuba.

É, contudo, na terceira narrativa, “Folhas secas”, que Juvenal Galeno acerta com o estereótipo do conto cearense. Temos aí, por assim dizer, o conto definitivo, com todos os seus componentes essenciais. É o trabalho mais excelente do conjunto, digno mesmo de figurar, com louvor, em qualquer antologia. Nele o vaqueiro José Bernardo, durante um serão noturno, relata os principais acontecimentos em torno de seu casamento com dona Francisquinha. “Folhas secas”, além de um enredo consistente, possui ritmo e ambientação primorosos, sendo ainda bem-humorado do início ao fim.

“Noite de núpcias” tenta reproduzir o esquema de “Folhas secas”, desta vez nos trazendo uma narrativa triste e lacrimejante. Não podemos esquecer que Cenas Populares foi publicado quando o Romantismo ainda estava vivendo seu auge no Brasil. O resultado neste quarto conto não foi tão satisfatório quanto no terceiro. O tema da garota iludida, abandonada e prostituída também já estava um tanto desgastado para a época, mas, ainda assim, o texto mantém-se bem-acabado e interessante.

“Senhor das caças” é outro ponto alto da coletânea. Juvenal Galeno, que sempre bebeu na fonte do folclore popular para fazer literatura, fez bom uso dessa matéria neste conto que é quase tão bom quanto “Folhas secas”. Durante uma “farinhada”, vários trabalhadores (de ambos os sexos) compartilham de uma prosa agradável, na qual alguns deles exercem a função de contadores de histórias fantásticas que divertem o grupo. “Senhor das caças” é praticamente uma “mini-narrativa-moldura”, contemplando histórias muito curtas. Embora a fantasia e o colorido dos causos relatados engrandeçam o conto, a ambientação construída na “moldura” é que o torna uma pequena joia literária.

Difícil de entender é como o autor, após tantos avanços, acaba retrocedendo na qualidade literária alcançada até então. “Clara” é o puro suco do romantismo exagerado e ultrapassado, sendo previsível e de pouca relevância. “Amor-do-Céu”, embora tocando num tema ainda recente e delicado para a época (o recrutamento de pais de família durante a Guerra do Paraguai), tem um ritmo arrastado e igualmente previsível. “O serão”, finalmente, embora não seja estupendo, encerra a coletânea de modo simpático.

Cenas Populares dificilmente agradará leitores em geral, por se tratar de um livro de conteúdo datado, onde um poeta experimenta pela primeira vez a prosa de ficção. Todavia, sendo a primeira coletânea de contos publicada por autor cearense, é leitura indispensável aos estudiosos da nossa literatura.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

***

Instagram: @autordanielcoutinho

E-mail para contato: autordanielcoutinho@gmail.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário