A origem do
conto cearense pode dividir opiniões, seja pela velha questão da diferença
entre “conto” e “novela”, como também pelas circunstâncias de publicação. Há
quem considere José de Alencar um precursor, por narrativas curtas como Cinco Minutos (1856) e A Viuvinha (1860). Em seguida, temos Franklin Távora, que publicou as histórias que
formam A Trindade Maldita em 1862. Contos Brasileiros (1868), de Araripe
Júnior, também entra na disputa. Mas é Juvenal Galeno, com suas Cenas Populares (1871), quem mais merece
o título de precursor.
José de
Alencar, o grande romancista, pouco se dedicou à produção de narrativas curtas.
Acredito que apenas dois textos seus atendem aos critérios do que entendemos
hoje por “conto”: o panfleto satírico “A corte do leão” (1867) e “Lembra-te de
mim” (1872), que saiu no livro Noturnos,
de Luís Guimarães Júnior. Cinco Minutos
e A Viuvinha, na condição de obras
mais extensas, não podem ser consideradas contos.
A Trindade Maldita, de Franklin Távora, por sua vez, obedece ao
formato de “narrativa-moldura”, à maneira de Noite na Taverna, de Álvares de Azevedo, sua principal influência.
Esse tipo de narrativa está mais para uma novela, embora, de fato, as histórias
contidas na “moldura” possam ser entendidas isoladamente. Quanto aos Contos Brasileiros, de Araripe Júnior, a
situação chega a ser engraçada, uma vez que o título é um tanto enganoso,
sugerindo um compilado de histórias curtas, mas entregando na verdade uma
novela, “Tabira”, seguida de um único conto: “Jaguaraçu e Saí”.
É Juvenal
Galeno quem, portanto, apresenta a primeira coletânea de contos no formato que
se utiliza até hoje, reunindo oito narrativas curtas no volume Cenas Populares. Se lembrarmos que as
demais obras acima mencionadas foram publicadas por seus autores fora do Ceará,
maior mérito atribuiremos a Galeno enquanto pioneiro do conto cearense.
Como ocorre
à maioria dessas obras iniciadoras de um segmento literário, Cenas Populares é um trabalho de pouca
excelência. Aqui o gênero “conto” está em processo de formação, e seu autor
experimenta várias fórmulas na tentativa de encontrar o modelo mais azado aos
seus fins estilísticos.
“Os pescadores”
nos introduz a essa experiência tão inovadora para o poeta cearense. É possível
que os contos de Galeno estejam dispostos em ordem cronológica de escrita, pois
esta primeira história é notadamente marcada pela poesia, gênero que
imortalizou o autor das Lendas e Canções
Populares. “Os pescadores” não possui um enredo convencional; nele temos
personagens e costumes sendo descritos, de tal forma a criar um quadro
contemplativo para apreciação do leitor, como um longo poema em prosa.
“Dia de
feira” segue por caminho semelhante. Deixamos o litoral cearense e seguimos
para a Serra da Aratanha, onde o autor nos leva a contemplar um “dia de feira”
no centro de Pacatuba. O autor experimenta, contudo, um modelo diferente,
dividindo o texto em três partes principais: a primeira segue o mesmo estilo
poético da narrativa anterior; a segunda se concentra num casal de
agricultores, apresentando uma narrativa isolada, com começo, meio e fim, e
que, por si só, renderia um conto; a terceira traz um relato histórico sobre a
Serra da Aratanha e da então vila de Pacatuba.
É, contudo,
na terceira narrativa, “Folhas secas”, que Juvenal Galeno acerta com o
estereótipo do conto cearense. Temos aí, por assim dizer, o conto definitivo,
com todos os seus componentes essenciais. É o trabalho mais excelente do
conjunto, digno mesmo de figurar, com louvor, em qualquer antologia. Nele o
vaqueiro José Bernardo, durante um serão noturno, relata os principais acontecimentos
em torno de seu casamento com dona Francisquinha. “Folhas secas”, além de um
enredo consistente, possui ritmo e ambientação primorosos, sendo ainda
bem-humorado do início ao fim.
“Noite de
núpcias” tenta reproduzir o esquema de “Folhas secas”, desta vez nos trazendo
uma narrativa triste e lacrimejante. Não podemos esquecer que Cenas Populares foi publicado quando o
Romantismo ainda estava vivendo seu auge no Brasil. O resultado neste quarto
conto não foi tão satisfatório quanto no terceiro. O tema da garota iludida,
abandonada e prostituída também já estava um tanto desgastado para a época,
mas, ainda assim, o texto mantém-se bem-acabado e interessante.
“Senhor das
caças” é outro ponto alto da coletânea. Juvenal Galeno, que sempre bebeu na
fonte do folclore popular para fazer literatura, fez bom uso dessa matéria
neste conto que é quase tão bom quanto “Folhas secas”. Durante uma “farinhada”,
vários trabalhadores (de ambos os sexos) compartilham de uma prosa agradável,
na qual alguns deles exercem a função de contadores de histórias fantásticas
que divertem o grupo. “Senhor das caças” é praticamente uma “mini-narrativa-moldura”,
contemplando histórias muito curtas. Embora a fantasia e o colorido dos causos
relatados engrandeçam o conto, a ambientação construída na “moldura” é que o
torna uma pequena joia literária.
Difícil de
entender é como o autor, após tantos avanços, acaba retrocedendo na qualidade
literária alcançada até então. “Clara” é o puro suco do romantismo exagerado e
ultrapassado, sendo previsível e de pouca relevância. “Amor-do-Céu”, embora
tocando num tema ainda recente e delicado para a época (o recrutamento de pais
de família durante a Guerra do Paraguai), tem um ritmo arrastado e igualmente
previsível. “O serão”, finalmente, embora não seja estupendo, encerra a coletânea
de modo simpático.
Cenas Populares dificilmente agradará leitores em geral, por se tratar de um livro de
conteúdo datado, onde um poeta experimenta pela primeira vez a prosa de ficção.
Todavia, sendo a primeira coletânea de contos publicada por autor cearense, é
leitura indispensável aos estudiosos da nossa literatura.
Avaliação: ★★★
Daniel Coutinho
***
Instagram:
@autordanielcoutinho
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