sábado, 11 de novembro de 2023

O Capote e outras histórias, de Nikolai Gógol - RESENHA #202

Eis que retorno à literatura russa! Se com Púchkin meus olhos de leitor não brilharam suficientemente, com Nikolai Gógol a experiência foi bem mais compensadora. Mas a questão é: podemos considerar russo o autor de “O capote”? Eu, particularmente, acredito que sim. Apesar de nascido na Ucrânia (numa época em que o país integrava o Império Russo) e de seus primeiros escritos tecerem sobre costumes e mitos de sua terra natal, Gógol viveu na Rússia, que serviu de cenário às suas obras mais importantes.

A literatura de Gógol é fantástica, nos dois sentidos. Seus textos são de uma qualidade artística impressionante que exerce sobre o leitor o fascínio característico das obras-primas. A universalidade dos temas, a escrita excelente e o bom humor em doses convenientes são alguns dos fatores que fazem da obra de Gógol atemporal. Mesmo quando um tema ou uma escolha me desagradavam, o talento mantinha-se evidente em qualquer das narrativas que li.

Quanto ao uso do fantástico, podemos dizer que Gógol antecipou em sua ficção o que mais tarde, no século XX, seria chamado de “realismo mágico”. Seus elementos fantasiosos, principalmente em sua “fase russa”, são nitidamente empenhados em servir uma crítica realista. É como se o “estranho” e o “maravilhoso” funcionassem como toques artísticos em sua obra, conferindo uma impressão final mais literária.

A seleta de contos e novelas que li, da Editora 34, está excelente, principalmente por trazer textos que revelam as múltiplas facetas do autor. “O capote”, que abre o volume, pode ser considerado a síntese do talento de Gógol. Há tanto o que dizer sobre ele, que seria justo escrever outra resenha à parte; mas, como não disponho de tempo para tal, contentemo-nos com um pequeno comentário.

O protagonista de “O capote” é um homem obcecado por seu trabalho. Na função de conselheiro titular, mesmo sendo ridicularizado por seus companheiros de repartição, Akáki Akákievitch sente-se intimamente realizado, a tal ponto, que concentra todos os prazeres de sua vida miserável no exercício de sua profissão. Quando, porém, vê-se obrigado a adquirir um novo capote, o foco de seus esforços acaba mudando e, com ele, sua própria vida.

A partir daí, muitas leituras podem ser feitas, tendo em vista os desdobramentos da narrativa. A figura do homem alienado, que concentra todos os seus anseios num único “lugar”, nos mostra o quão triste e perigoso pode ser esse modo de vida, especialmente quando o “lugar” para onde convergem todos os seus esforços deixa de existir.

“Diário de um louco” é o conto mais triste do conjunto. A genialidade de Gógol na construção desse trabalho torna-se ainda mais admirável pela época em que o escreveu. Um fator digno de nota é a mudança de tom que a narrativa assume do meio para o final. A história que começa leve e bem-humorada torna-se trágica e melancólica; mas tal mudança não chega a ser abrupta, pois o formato de “diário” permite uma sucessão mais livre dos acontecimentos.

“O nariz” é um dos contos mais estranhos que já li. A estratégia usada por Gógol para criticar o funcionalismo público de seu tempo é das mais inusitadas. Mas o conto não se limita a isso. Tal como “O capote”, é capaz de render várias interpretações. A meu ver, “o nariz” de Kovaliov é o objeto, concreto ou abstrato, que eleva o ego do homem vaidoso, conferindo-lhe status social. Pode ser o carro do ano, uma roupa de marca ou até um título acadêmico. Uma vez perdido esse objeto, perde-se o valor da própria vida. Eis outro conto que suscita amplas reflexões.

“Noite de natal” é divertidíssimo. É a comédia pastelão do século XIX. As peripécias divertidas, que envolvem o próprio diabo, fizeram-me rir por diversas vezes, nesta que é a maior história do conjunto. Em compensação, “Viy” não ganhou minha simpatia. Trata-se de um conto de terror, totalmente baseado numa lenda ucraniana. Definitivamente não é um texto ruim, mas o enredo não soube prender minha atenção como nas narrativas anteriores.

A excelência do trabalho de Gógol já é, para mim, o grande momento das leituras do ano; e, a essa altura, dificilmente outro autor poderá superá-lo. Se me tivessem dito que em 2023 eu leria Jane Austen, Charlote Brontë e um autor russo, e que este último seria preferido às outras duas, eu certamente não teria acreditado. Como é a vida, hem?

Avaliação: ★★★★

Daniel Coutinho

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