Eis que retorno à literatura russa! Se com
Púchkin meus olhos de leitor não brilharam suficientemente, com Nikolai Gógol a
experiência foi bem mais compensadora. Mas a questão é: podemos considerar russo
o autor de “O capote”? Eu, particularmente, acredito que sim. Apesar de nascido
na Ucrânia (numa época em que o país integrava o Império Russo) e de seus
primeiros escritos tecerem sobre costumes e mitos de sua terra natal, Gógol
viveu na Rússia, que serviu de cenário às suas obras mais importantes.
A literatura
de Gógol é fantástica, nos dois sentidos. Seus textos são de uma qualidade
artística impressionante que exerce sobre o leitor o fascínio característico
das obras-primas. A universalidade dos temas, a escrita excelente e o bom humor
em doses convenientes são alguns dos fatores que fazem da obra de Gógol
atemporal. Mesmo quando um tema ou uma escolha me desagradavam, o talento
mantinha-se evidente em qualquer das narrativas que li.
Quanto ao
uso do fantástico, podemos dizer que Gógol antecipou em sua ficção o que mais
tarde, no século XX, seria chamado de “realismo mágico”. Seus elementos
fantasiosos, principalmente em sua “fase russa”, são nitidamente empenhados em
servir uma crítica realista. É como se o “estranho” e o “maravilhoso”
funcionassem como toques artísticos em sua obra, conferindo uma impressão final
mais literária.
A seleta de
contos e novelas que li, da Editora 34, está excelente, principalmente por
trazer textos que revelam as múltiplas facetas do autor. “O capote”, que abre o
volume, pode ser considerado a síntese do talento de Gógol. Há tanto o que
dizer sobre ele, que seria justo escrever outra resenha à parte; mas, como não
disponho de tempo para tal, contentemo-nos com um pequeno comentário.
O
protagonista de “O capote” é um homem obcecado por seu trabalho. Na função de
conselheiro titular, mesmo sendo ridicularizado por seus companheiros de
repartição, Akáki Akákievitch sente-se intimamente realizado, a tal ponto, que
concentra todos os prazeres de sua vida miserável no exercício de sua profissão.
Quando, porém, vê-se obrigado a adquirir um novo capote, o foco de seus
esforços acaba mudando e, com ele, sua própria vida.
A partir
daí, muitas leituras podem ser feitas, tendo em vista os desdobramentos da
narrativa. A figura do homem alienado, que concentra todos os seus anseios num
único “lugar”, nos mostra o quão triste e perigoso pode ser esse modo de vida, especialmente
quando o “lugar” para onde convergem todos os seus esforços deixa de existir.
“Diário de
um louco” é o conto mais triste do conjunto. A genialidade de Gógol na
construção desse trabalho torna-se ainda mais admirável pela época em que o
escreveu. Um fator digno de nota é a mudança de tom que a narrativa assume do
meio para o final. A história que começa leve e bem-humorada torna-se trágica e
melancólica; mas tal mudança não chega a ser abrupta, pois o formato de “diário”
permite uma sucessão mais livre dos acontecimentos.
“O nariz” é
um dos contos mais estranhos que já li. A estratégia usada por Gógol para
criticar o funcionalismo público de seu tempo é das mais inusitadas. Mas o conto
não se limita a isso. Tal como “O capote”, é capaz de render várias
interpretações. A meu ver, “o nariz” de Kovaliov é o objeto, concreto ou
abstrato, que eleva o ego do homem vaidoso, conferindo-lhe status social. Pode
ser o carro do ano, uma roupa de marca ou até um título acadêmico. Uma vez
perdido esse objeto, perde-se o valor da própria vida. Eis outro conto que
suscita amplas reflexões.
“Noite de
natal” é divertidíssimo. É a comédia pastelão do século XIX. As peripécias
divertidas, que envolvem o próprio diabo, fizeram-me rir por diversas vezes,
nesta que é a maior história do conjunto. Em compensação, “Viy” não ganhou
minha simpatia. Trata-se de um conto de terror, totalmente baseado numa lenda
ucraniana. Definitivamente não é um texto ruim, mas o enredo não soube prender
minha atenção como nas narrativas anteriores.
A excelência
do trabalho de Gógol já é, para mim, o grande momento das leituras do ano; e, a
essa altura, dificilmente outro autor poderá superá-lo. Se me tivessem dito que
em 2023 eu leria Jane Austen, Charlote Brontë e um autor russo, e que este
último seria preferido às outras duas, eu certamente não teria acreditado. Como
é a vida, hem?
Avaliação: ★★★★
Daniel Coutinho
***
Instagram:
@autordanielcoutinho
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