A cada ano
eu me descubro mais enquanto leitor. Desde muito que a literatura faz parte da
minha vida e, em todo esse tempo, tem sido motivo de grande entusiasmo. Daí,
obviamente, tive muitas fases legais: a fase das descobertas, a fase da
formação do gosto pessoal, a fase de querer ler todos os clássicos mais
conhecidos, a fase de comprar livros desenfreadamente, e por aí vai.
Dessa fase
de comprar muitos livros herdei uma biblioteca gigantesca que não parava de
crescer. Mas uma outra fase maravilhosa chegou para mim: a do desapego. Desde
então, sou um novo homem. Os livros desinteressantes (que já eram ou que se
tornaram com meu amadurecimento) foram todos indo embora, o que era bom, pois
cediam espaço aos novos que nunca param de chegar.
Às vezes,
admito, dá pena passar adiante algumas edições especiais, como é o caso desta
de Laranja Mecânica: comemorativa dos
50 anos da obra. Mas como nunca mais devo ler este negócio medonho novamente,
não faz sentido mantê-lo aqui parado na estante. Talvez esteja sendo inoportuno
com uma introdução já demasiado longa para uma resenha, mas esta última leitura
me fez repensar bastante sobre livros e leitores de forma geral.
Para mim, Laranja Mecânica (1962) é um livro ruim,
mas esta é só uma opinião pessoal. Um livro que há mais de cinquenta anos
permanece sendo reeditado e traduzido no mundo todo sem interrupção certamente
terá algo de bom, e isso não posso negar. Mas o mundo é muito diverso e é
impossível agradar a todos com a nossa conversa. E o que são os livros se não
longas conversas compostas artisticamente por seus autores?
Já estou
lendo outro livro, O Bandido do Rio das
Mortes, de Bernardo Guimarães, e quando menos percebi já estava na metade.
É que a conversa estava fluindo agradavelmente, preservando sempre o meu
interesse. Laranja Mecânica não
conversou comigo da mesma forma. O problema não era a escrita do Burgess, tampouco
a gíria nadsat criada por ele e que pode sim ser um obstáculo nos primeiros
capítulos. O problema não era nem mesmo o tema, que de fato não é dos meus
preferidos, mas sim o tratamento dado a ele.
Em resumo,
as escolhas de Burgess para sua obra mais famosa não conversaram comigo da
forma como gostaria. E, agora sim, após este longo introito, podemos nos
concentrar finalmente no livro em si.
Laranja Mecânica é um romance distópico que nos leva para uma Londres devastada pela
violência juvenil. Alex é um adolescente de quinze anos que, juntamente com
seus parceiros de gangue, realiza diversos atos criminosos: assaltos,
espancamentos, depredações e até estupros. Esses jovens atuam deliberadamente,
isentos de qualquer sentimento de empatia ou compaixão.
Mesmo entre
os parceiros de gangue há desentendimentos e, numa determinada situação, Alex é
traído pelos companheiros e capturado pela polícia. A vítima do crime em
questão acaba falecendo e Alex é condenado a vários anos de prisão.
Desejoso de
recuperar sua liberdade o quanto antes, Alex aceita se submeter a uma nova
técnica correcional, ainda em desenvolvimento, e que prometia curá-lo de seus
maus instintos no inacreditável período de duas semanas. É a partir daí que o
autor completa o repertório necessário para chegar à crítica central pretendida
pelo livro.
Agora passemos
aos diversos problemas narrativos da obra de Burgess. Podemos começar pela construção
dos personagens, que beira o ridículo, de tão rasa que é. Afora Alex, os demais
personagens mais parecem marionetes programadas para cumprirem seus objetivos
essenciais no livro. Fica claro que os pais de Alex, desatenciosos e omissos,
têm bastante culpa quanto à péssima formação de caráter do garoto. Eis uma
pauta, a meu ver, essencial e que certamente poderia conferir mais substância
ao romance, mas que no entanto foi negligenciada de modo imperdoável.
Os demais
personagens de relativa importância, como o escritor que é assaltado pela
gangue de Alex e o capelão da cadeia, são igualmente pouco aproveitados, não
rendendo episódios interessantes que colaborassem à trama. As participações
deles são pontuais e não chegam a formar enredos secundários, tornando a
narrativa toda centrada no próprio Alex, o que para mim tornou o livro
insuficiente e pouco lúdico. Verdade seja dita: subtramas já salvaram muitos
livros.
Algumas
situações também ficaram muito mal explicadas, seja a morte de um personagem ou
mesmo o destino de outros que assumem profissões improváveis do dia para a noite.
E o que dizer do capítulo final? É perfeitamente compreensível a decisão dos
editores americanos de o deixarem de fora do livro. O capítulo final de Laranja Mecânica é tão forçado, que não
pude evitar concluir a leitura na força do ódio. Pareceu-me simplesmente
inconcebível, e talvez que a obra me parecesse em geral mais regular se
concluída até onde os americanos a divulgaram, inclusive no filme de 1971.
Laranja Mecânica, além dos problemas já apontados, é do início ao fim uma leitura
incômoda: seja pela violência exagerada, pelos métodos radicais aplicados em
Alex, ou pela falta de algum personagem ou situação que de certo modo
compensassem o leitor por tantos incômodos. Se o capítulo final pretendia dar
essa compensação, o objetivo não foi alcançado. O que fica pois de positivo de
toda essa experiência é a conclusão de que uma nova fase está chegando por
aqui: a de abandonar livros que não conversam comigo.
Avaliação: ★★
Daniel Coutinho
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