Um dos
maiores privilégios da literatura contemporânea é o tratamento de temas que no
passado eram totalmente silenciados. A transexualidade é de fato um assunto delicado
até para os nossos dias, que dirá para os séculos passados. Ainda há muitas
controvérsias no que se refere às pessoas “transgênero”, mas o crescente
interesse sobre questões de identidade de gênero e orientação sexual tem
aclarado muitos pontos obscuros e colaborado para uma melhor compreensão da
população LGBT+.
Alex Gino,
ficcionista estadunidense, apresenta-nos George
(2015), cuja proposta é bastante ousada: uma narrativa sobre uma criança trans. A premissa do livro interessou-me
instantaneamente. Desejava conferir de perto como tal história fora
desenvolvida, antevendo as múltiplas e inevitáveis dificuldades de se tratar um
assunto de alta complexidade com o público infantojuvenil.
Preciso
confessar que fiquei deveras surpreendido com a habilidade com que Alex Gino
desempenhou a escrita de George. O
livro está um primor. O narrador em 3ª pessoa não se acanha em tratar George
como o que é: uma menina. A simplicidade e a naturalidade com que ele encara a
complexa condição de sua protagonista são reconfortantes, pois conferem ao
texto uma leveza que se mantém do início ao fim.
No enredo, a
pequena George, de aproximadamente dez anos, sonha poder interpretar a
memorável aranha de A Teia de Charlotte,
um clássico de E. B. White. No entanto, George depara-se com um empecilho:
todos pensam que ela é um menino, pois seu corpo é biologicamente masculino.
Quando ela se candidata ao papel, a conservadora senhora Udell enfatiza que
George, a despeito de seu talento, só poderia fazer papéis “de meninos”.
A partir de
situações cotidianas, Alex consegue transmitir ao leitor a insatisfação de
George por não poder ser quem ela é de verdade. A garota, por exemplo, precisa
esconder suas revistas adolescentes, pois eram voltadas para o público
feminino. Além disso, mesmo sendo a melhor amiga de Kelly, ela é encarada como
um “melhor amigo”, sendo privada portanto de demonstrar com franqueza sua
verdadeira personalidade.
Alex, sempre
com muita sutileza, ainda aborda questões como aceitação da família, bullying
na escola e representatividade. Mesmo o processo de “transição” da personagem
dá-se muito naturalmente. Mas não quero me aprofundar nesse assunto para não
comprometer a experiência de leitura de ninguém.
Outro fator
importante na obra é o esclarecimento que se faz da diferença entre o “homossexual”
e o “transgênero”. Em determinado momento, George é encarada por alguns
personagens como um “menino gay”, o que a deixa um tanto aborrecida, já que sua
sexualidade ainda não aflorou. Nesse ponto, entendemos que o que a protagonista
busca afirmar é sua “identidade de gênero”, cujo conceito ainda é bastante
confundido com “orientação sexual”.
Por tudo que
citei nesta resenha, George é sem
dúvida um livro incrível, e que precisa ser mais difundido entre jovens e
adultos. Acabei de saber que brevemente a obra será reeditada com um novo
título, Melissa, atendendo a um
desejo de Alex e de muitos leitores que ficaram inconformados com o destaque
para o nome masculino. Eu, particularmente, prefiro o título original, pois, a
meu ver, ele transmite melhor a temática do livro, que é justamente a
insatisfação por ser “George”, como também a trajetória da personagem até finalmente
tornar-se “Melissa”. Mas, com este ou aquele título, a verdade é que o livro de
Alex Gino não deixa de ser o que é: simplesmente maravilhoso.
Avaliação: ★★★★★
Daniel Coutinho
***
Instagram: @autordanielcoutinho
Escreva para o blog: autordanielcoutinho@gmail.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário