Ainda estou mui impressionado pela leitura d’A Intrusa (1905), de Júlia Lopes de
Almeida. Sabe quando você tem a impressão de que tal livro foi feito especialmente
para agradá-lo? Pois foi esta minha impressão. D. Júlia já me havia dado
mostras de seu talento com o estranho Cruel Amor, lido ano passado; mas esta nova experiência foi ainda mais grandiosa
pelo efeito da recepção. Lia as páginas d’A
Intrusa com tanto interesse, que desejava que o livro não terminasse; ainda
que não conseguisse poupá-lo. Certamente que o argumento do romance, por ser
tão instigante, renderia uma obra mais extensa. Sentia-me um coautor enquanto
formulava mentalmente outros episódios que adoraria ver no livro.
Simpatizei demasiado o enredo. Argemiro, viúvo
há nove anos, vê com tristeza a desordem em que se acha seu lar; lamenta também
a ausência da filha, Maria da Glória, de onze anos, que vive na chácara dos
avós maternos, onde é muito malcriada. Mesmo sendo ainda jovem, repudia um
segundo casamento, tão viva que está a imagem da falecida em seus pensamentos;
sem contar que a mulher, agonizando, fizera-lhe prometer fidelidade mesmo após
a morte. Nestas circunstâncias, não querendo casar-se novamente e ao mesmo
tempo necessitado de uma intervenção feminina em sua casa, põe um anúncio no jornal,
solicitando uma governanta.
Alice Galba, uma jovem solteira de vinte e cinco
anos, logo se apresenta na residência do viúvo, e por ele é admitida, com a
especial condição de que não se vejam. Mesmo na entrevista de contratação,
Argemiro não pôde ver o rosto de sua governanta, que estava coberto por um véu.
Logo nos primeiros dias de trabalho, Alice assume o controle da casa e dos
criados, inclusive Feliciano, que era quem dispunha de tudo anteriormente. Este
era criado de confiança por ser filho da ama de leite da falecida senhora, mas
não tinha o menor desvelo nos trabalhos domésticos, abusando dos gastos e da
confiança de seu patrão.
Uma súbita mudança se faz notar na casa de
Argemiro que, imediatamente, percebe o decoro da governanta no trato das mais simples
tarefas. Os móveis lustrosos, as roupas bem dobradas nas gavetas, objetos
antigos restaurados, o jardim bem cultivado, todos os cômodos na mais perfeita
ordem. Tudo enfim torna-se agradável aos olhos de Argemiro, que mesmo nunca vendo
Alice, pressente-a em todos os detalhes. Sente-se mesmo satisfeito por não
vê-la, evitando todo e qualquer constrangimento; não a reconhece como mulher,
mas como uma alma eficiente e silenciosa.
Mas agora entendamos por que tão prendada mulher
é uma “intrusa”.
Com uma governanta em casa, Feliciano perde os
plenos poderes que egoisticamente usufruía. Além de não ter mais o comando dos
outros criados, ele já não pode fumar os odorosos havanas do senhor, nem dispor
de suas camisas e gravatas, e, principalmente, já não pode despender com
excessos o dinheiro que lhe era confiado. Destruíram seu reinado e, para ele, é
inadmissível que uma mulher branca o tenha feito. Revoltado com sua própria
raça, Feliciano tem mania de superioridade por ter sido educado na mesma
cartilha de sua finada senhora.
Luiza, a baronesa do Cerro Alegre e sogra de
Argemiro, também aborrece Alice, pois receia que a moça possa tomar o lugar de
sua filha. A finada é cultuada de tal forma como se nunca houvera morrido. A
baronesa teme que seu genro falte com a promessa exigida pela morta, como
também lamenta que sua neta, Maria da Glória, esteja cada vez mais amiga da “outra”,
que tem alcançado grandes progressos na educação da menina. Alice, segundo ela,
não passa de uma calculista mal-intencionada que, fazendo-se de boazinha, deseja
ser a nova senhora da família.
Petronilha, esposa do ministro Pedrosa, não
acredita que haja candidato mais conveniente para casar-se com sua filha do que
Argemiro, que é advogado muito bem-sucedido. A senhora pedrosa arrasta a filha
para o lado do viúvo em todas as ocasiões possíveis, ainda que a jovem não
demonstre sinceras inclinações amorosas por ele. Alice Galba representa,
portanto, uma perigosa ameaça que poderá tornar tudo ainda mais difícil para
seus planos.
Finalmente, ainda que com muita sutileza, padre
Assunção, o melhor amigo de Argemiro, demonstra receios em relação a Alice.
Ainda que para ele a jovem governanta não seja exatamente uma intrusa, é sempre
com cuidado que observa o quanto seu amigo é dominado por sua delicada
influência. Ao leitor, podem parecer estranhos os zelos do padre que, mais do
que ninguém, é consciente da nobreza da governanta. Mas há uma razão especial
para essa reserva, que só será revelada a seu tempo.
O objeto da cisma de todos esses personagens é
quem menos aparece no livro. O que sabemos de Alice é sempre nos transmitido
por intermédios. A autora meio que evita nossa simpática intrusa, como a querer
que o leitor formule sua personalidade a partir das impressões dos outros, o
que me pareceu uma interessante sutileza da narrativa. Contudo, mesmo privados
de um acesso mais direto à misteriosa personagem, pressentimo-la o tempo todo,
tal como Argemiro que, mesmo sem a ver, percebe-lhe constantemente, seja no
aroma que agora há em sua casa, seja num livro aberto, abandonado às pressas numa
janela.
A
Intrusa é de uma animosidade que alude aos melhores romances do
século XIX. Há uma vivacidade nos episódios, pintados sempre com muita graça,
como decididos a agradar o leitor a todo custo. O ritmo é sempre formidável
pela leveza e brilhantismo das cenas. Não é livro que propõe densas reflexões
ou que vá mudar a sua vida; é obra para encanto e deleite de todo leitor que
esteja sôfrego por acompanhar uma história curiosa e enternecedora.
Avaliação: ★★★★★
Daniel Coutinho
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