quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

A Intrusa, de Júlia Lopes de Almeida - RESENHA #57

Ainda estou mui impressionado pela leitura d’A Intrusa (1905), de Júlia Lopes de Almeida. Sabe quando você tem a impressão de que tal livro foi feito especialmente para agradá-lo? Pois foi esta minha impressão. D. Júlia já me havia dado mostras de seu talento com o estranho Cruel Amor, lido ano passado; mas esta nova experiência foi ainda mais grandiosa pelo efeito da recepção. Lia as páginas d’A Intrusa com tanto interesse, que desejava que o livro não terminasse; ainda que não conseguisse poupá-lo. Certamente que o argumento do romance, por ser tão instigante, renderia uma obra mais extensa. Sentia-me um coautor enquanto formulava mentalmente outros episódios que adoraria ver no livro.

Simpatizei demasiado o enredo. Argemiro, viúvo há nove anos, vê com tristeza a desordem em que se acha seu lar; lamenta também a ausência da filha, Maria da Glória, de onze anos, que vive na chácara dos avós maternos, onde é muito malcriada. Mesmo sendo ainda jovem, repudia um segundo casamento, tão viva que está a imagem da falecida em seus pensamentos; sem contar que a mulher, agonizando, fizera-lhe prometer fidelidade mesmo após a morte. Nestas circunstâncias, não querendo casar-se novamente e ao mesmo tempo necessitado de uma intervenção feminina em sua casa, põe um anúncio no jornal, solicitando uma governanta.

Alice Galba, uma jovem solteira de vinte e cinco anos, logo se apresenta na residência do viúvo, e por ele é admitida, com a especial condição de que não se vejam. Mesmo na entrevista de contratação, Argemiro não pôde ver o rosto de sua governanta, que estava coberto por um véu. Logo nos primeiros dias de trabalho, Alice assume o controle da casa e dos criados, inclusive Feliciano, que era quem dispunha de tudo anteriormente. Este era criado de confiança por ser filho da ama de leite da falecida senhora, mas não tinha o menor desvelo nos trabalhos domésticos, abusando dos gastos e da confiança de seu patrão.

Uma súbita mudança se faz notar na casa de Argemiro que, imediatamente, percebe o decoro da governanta no trato das mais simples tarefas. Os móveis lustrosos, as roupas bem dobradas nas gavetas, objetos antigos restaurados, o jardim bem cultivado, todos os cômodos na mais perfeita ordem. Tudo enfim torna-se agradável aos olhos de Argemiro, que mesmo nunca vendo Alice, pressente-a em todos os detalhes. Sente-se mesmo satisfeito por não vê-la, evitando todo e qualquer constrangimento; não a reconhece como mulher, mas como uma alma eficiente e silenciosa.

Mas agora entendamos por que tão prendada mulher é uma “intrusa”.

Com uma governanta em casa, Feliciano perde os plenos poderes que egoisticamente usufruía. Além de não ter mais o comando dos outros criados, ele já não pode fumar os odorosos havanas do senhor, nem dispor de suas camisas e gravatas, e, principalmente, já não pode despender com excessos o dinheiro que lhe era confiado. Destruíram seu reinado e, para ele, é inadmissível que uma mulher branca o tenha feito. Revoltado com sua própria raça, Feliciano tem mania de superioridade por ter sido educado na mesma cartilha de sua finada senhora.

Luiza, a baronesa do Cerro Alegre e sogra de Argemiro, também aborrece Alice, pois receia que a moça possa tomar o lugar de sua filha. A finada é cultuada de tal forma como se nunca houvera morrido. A baronesa teme que seu genro falte com a promessa exigida pela morta, como também lamenta que sua neta, Maria da Glória, esteja cada vez mais amiga da “outra”, que tem alcançado grandes progressos na educação da menina. Alice, segundo ela, não passa de uma calculista mal-intencionada que, fazendo-se de boazinha, deseja ser a nova senhora da família.

Petronilha, esposa do ministro Pedrosa, não acredita que haja candidato mais conveniente para casar-se com sua filha do que Argemiro, que é advogado muito bem-sucedido. A senhora pedrosa arrasta a filha para o lado do viúvo em todas as ocasiões possíveis, ainda que a jovem não demonstre sinceras inclinações amorosas por ele. Alice Galba representa, portanto, uma perigosa ameaça que poderá tornar tudo ainda mais difícil para seus planos.

Finalmente, ainda que com muita sutileza, padre Assunção, o melhor amigo de Argemiro, demonstra receios em relação a Alice. Ainda que para ele a jovem governanta não seja exatamente uma intrusa, é sempre com cuidado que observa o quanto seu amigo é dominado por sua delicada influência. Ao leitor, podem parecer estranhos os zelos do padre que, mais do que ninguém, é consciente da nobreza da governanta. Mas há uma razão especial para essa reserva, que só será revelada a seu tempo.

O objeto da cisma de todos esses personagens é quem menos aparece no livro. O que sabemos de Alice é sempre nos transmitido por intermédios. A autora meio que evita nossa simpática intrusa, como a querer que o leitor formule sua personalidade a partir das impressões dos outros, o que me pareceu uma interessante sutileza da narrativa. Contudo, mesmo privados de um acesso mais direto à misteriosa personagem, pressentimo-la o tempo todo, tal como Argemiro que, mesmo sem a ver, percebe-lhe constantemente, seja no aroma que agora há em sua casa, seja num livro aberto, abandonado às pressas numa janela.

A Intrusa é de uma animosidade que alude aos melhores romances do século XIX. Há uma vivacidade nos episódios, pintados sempre com muita graça, como decididos a agradar o leitor a todo custo. O ritmo é sempre formidável pela leveza e brilhantismo das cenas. Não é livro que propõe densas reflexões ou que vá mudar a sua vida; é obra para encanto e deleite de todo leitor que esteja sôfrego por acompanhar uma história curiosa e enternecedora.

Avaliação: ★★★★★

Daniel Coutinho

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