Não
imaginava que Amor de Salvação me
daria tanto trabalho quanto deu. Camilo Castelo Branco foi um gênio da língua
portuguesa, sobre a qual tinha um domínio inacreditável. Dele, só tinha lido Amor de Perdição e A Brasileira de Prazins. O primeiro, sua obra mais conhecida,
escrita quase como um passatempo quando esteve na prisão, foi uma boa iniciação
de sua obra para mim; o outro, porém, me apresentou o verdadeiro Camilo, com
toda sua genialidade e poderoso vernáculo. Embora o tenha lido há muito tempo,
lembro muito bem do quanto fiquei envolvido pela história da desditosa Marta de
Prazins. As dificuldades da leitura, lembro bem, não tiravam o interesse do
livro. Taí um livro que quero muito reler! Essas duas leituras haviam criado
uma imagem positiva de Camilo em minha concepção. Ansiava pelo Amor de Salvação, supondo que me seria
mais agradável ainda que o outro, por trazer um título que sugere uma réplica
feliz à trágica novela de Simão e Teresa.
Ledo
engano de minha parte! Criar expectativas pode ser prejudicial às experiências
de leitura, mas, neste caso, creio que o livro me seria inevitavelmente o que
foi: só bom, nada mais. A princípio, confesso que me senti desafeiçoado àquela
linguagem altamente rebuscada de Camilo, aos diálogos complexamente elaborados,
ao linguajar típico da região minhota, etc. Felizmente, minha edição trazia
rodapés em quase todas as páginas, o que me foi bastante útil. Conta-se que, no
século XIX, os brasileiros buscavam os livros de Camilo, que àquela época já
era o mestre da novela passional, quando desejavam enriquecer seu vocabulário.
Em observação preliminar à obra, ele já adverte: “O leitor folheia duzentas
páginas deste livro, e o amor de felicidade e bom exemplo não se lhe depara ou
vagamente lhe preluz. [...] Volume que descrevesse um amor de bem-aventuranças
terrenas, seria uma fábula”. Nessa perspectiva, este livro é um “Amor de
Perdição 2”, assinalando-se que a dose de perdição nele é ainda maior rsrsrs.
Mas sem querer confundir os leitores, vou logo avisando que Amor de Perdição e Amor de Salvação não possuem qualquer ligação em relação às tramas,
que são independentes.
A
proposta de Camilo é apresentar um protagonista que vivencia a perdição através
do amor, mas que ao final poderá ser “salvo”. Não pensem que isto é um spoiler.
Em se tratando de Amor de Salvação,
nem me preocupo em dar spoilers, uma vez que o próprio autor faz isso. E isto é
sério! Eis o primeiro detalhe que me incomodou (e bastante mesmo!) nesta
leitura: o autor antecipa revelações. Logo nos capítulos iniciais, o leitor já
tem uma ideia geral do que será contado com pormenores nos capítulos
subsequentes. O que ocorre é que o enredo de Amor de Salvação, por não ser lá muito interessante, acaba se
tornando mais insosso em decorrência do leitor já saber muito a respeito. Que
ousadia de minha parte chamar o livro de Camilo de insosso rsrsrs! Mas estou
apenas sendo sincero. Não vou desgostar de Camilo por causa desse livro! É
praticamente impossível amar todos os livros de um autor. Até Alencar, de quem
admiro quase todas as obras literárias, me aborreceu com sua Diva e, de certo modo, também n’O Sertanejo. Assim, continuo sendo
admirador confesso de Camilo e, com certeza, lerei ainda muitos outros livros
seus!
Amor de Salvação contém dois narradores:
o narrador-autor, que se mantém no anonimato; e Afonso de Teive, o
protagonista. Os quatro primeiros capítulos funcionam como um prólogo, onde se
dá o panorama geral do que decorrerá em sequência, conforme já observei. O
narrador-autor, perdendo-se pela região do Minho, acaba deparando-se com um
homem que se dá a conhecer. Trata-se de Afonso, não reconhecido de imediato,
pelas visíveis mudanças sofridas. Aquele estudante boêmio que publicava textos
espirituosos tornara-se num senhor de vida tranquila, ao lado da mulher e de
oito filhos (sem contar um nono à espera). Afonso diz ter encontrado a
felicidade na vida simples, sob a luz da religião; mas a verdade é que não foi
muito fácil para ele chegar aonde chegou. O narrador-autor, que é um romancista
de fôlego (sugerindo ser o próprio Camilo?), acaba cedendo ao desejo de Afonso
de transportar sua história de vida para um romance, que deveria se chamar
“Amor de Salvação”. Os dois amigos encaminham-se para uma estalagem, onde
passam a noite; fazendo-se aí ocasião suficientemente propícia para que Afonso
realize todo o seu relato.
Afonso
conta sobre os planos de sua mãe Eulália de casá-lo com a filha de uma grande
amiga. Esta donzela é Teodora, que achando-se órfã, é encerrada num convento
por um tio que lhe serve de tutor. Mesmo sabendo do acordo selado entre as duas
mães sobre o casamento de seus filhos, o tio de Teodora opõe-se ao consórcio,
alegando a pouca idade dos jovens. O convento constitui verdadeiro tormento
para Teodora, que é seduzida pelos prazeres mundanos. Consciente de que
esperaria muito tempo até poder casar-se com Afonso, ela encontra uma maneira
de antecipar a saída de seu cárcere: casando-se com seu primo Eleutério, o
filho de seu tio-tutor. Eleutério, longe de ter as qualidades de Afonso, é um
ignorante que ganha a vida num negócio com animais. Nem preciso dizer que
Teodora não o amava; casou-se mesmo com a intenção de libertar-se. A notícia do
casamento de Teodora causa grande alvoroço em Afonso e sua família. A mãe insiste
em que ele a esqueça, mas embora concentre seus interesses em estudos e
viagens, seus esforços são baldados e ele continua a amar Teodora.
Impossível
não lembrar as observações da crítica com relação às escolhas irônicas de
Camilo aos nomes de suas personagens. Teodora, por exemplo, significa “dádiva
divina”, quando é apresentada no livro como mulher fatal. Mafalda, prima de
Afonso, tem um nome que remete a “mau fado” ou “destino ruim”, quando no livro
é um anjo de bondade. Essa prima Mafalda surge na história quando Afonso passa
uma temporada na casa de Fernão de Teive, seu tio. A moça, que é um exemplo de
pureza, involuntariamente se encanta do primo, mas sabe que ele tem o coração
ocupado por uma mulher casada com quem ainda se corresponde. Teodora, desejosa
de novas venturas, tenta Afonso por vários meios, até que ele não possa mais
resistir.
Analisando
a síntese da narrativa, constata-se que a mesma não é ruim. O que me desgostou,
além das revelações antecipadas de que já falei, foi a fluência do texto. Quase
sempre previsível, a novela carece daquela vivacidade tão comum aos escritores
do Romantismo. Embora seja um romance romântico de fato, o autor experimenta um
humor satírico, que é o que, de certo modo, sustenta a obra. O narrador-autor meio
que faz-se de comentarista às desventuras de seu amigo. Dei boas gargalhadas
com a ironia ferina que perpassa todo o volume. Assim, agradei-me mais dos
elementos secundários que da narrativa propriamente dita. Reconheci
perfeitamente a genialidade do escritor, mas senti falta do poder de fabulação
do romancista.
Amor de Salvação não traz uma narrativa
envolvente, empolgante e instigante. É obra que se eleva por sua forma
diferenciada de defender a moral e a religião. É um romance romântico atípico,
cuja técnica literária aproxima-se à de um ensaio satírico, não nas proporções
de uma Madame Pommery, mas ainda
distante de um romance romântico convencional.
Avaliação: ★★★
Daniel Coutinho
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