sábado, 10 de agosto de 2024

Aguapés Flutuam na Ribeira, de João de Sousa Ferraz - RESENHA #212

O reino da Literatura é habitado por vários espécimens: temos escritores, leitores, leitores-escritores, escritores-não-leitores (sim, eles existem!), dentre muitos outros. Mas um tipo que sempre me chamou bastante atenção é o “aspirante a escritor” e, vez por outra, acabo me deparando com algum deles.

Todas as pessoas estão capacitadas para a leitura e a escrita, embora muitas não explorem essas habilidades; havendo o desejo de desenvolvê-las, um sujeito pode estudar, consultar manuais, fazer cursos, etc., que se tornará possivelmente um ótimo redator: estará habilitado para a notícia, para a coluna de fofoca e para publicar livros que trazem títulos como “12 Regras para Alguma Coisa”.

Se o sujeito, porém, é um “aspirante a escritor de literatura”, o caso é mais complexo. Isto porque os poetas, ficcionistas, dramaturgos e artistas em geral já nascem com a centelha da arte crepitando nos miolos. É quase como uma condição não diagnosticada pela ciência. Na falta desta centelha, resta ao sujeito arriscar-se num território desconhecido, contando unicamente com sua boa vontade e talvez com o sonho ou ambição de tornar-se, por exemplo, um romancista. Daí é que surgem livros como Aguapés Flutuam na Ribeira (1969), do paulista João de Sousa Ferraz (1903-1988).

O título é dos mais poéticos, sem dúvida, sendo um excelente chamariz para leitores como eu. Desejando ter uma ideia do livro, busquei por uma sinopse, mas nada encontrei, nem mesmo nas orelhas do meu exemplar. Parecia que ninguém no mundo havia lido tal obra. Mas como isso nunca foi um empecilho para mim, fui descobrir do que se tratava.

Foi com prazer que li o primeiro capítulo de Aguapés Flutuam na Ribeira. Estava diante de um romance regionalista, gênero pelo qual sou apaixonado. Mas, logo nos capítulos seguintes, percebi que algo ali estava errado. Cauteloso, pensei: “Paciência, que, desses quinhentos personagens, uma dezena ganhará brevemente um desenvolvimento lógico na ‘trama’!”. O caso é que não houve trama nem desenvolvimento, mas sim outros quinhentos personagens.

Todo mundo já ouviu os pais, os tios ou os avós entretidos numa conversa longa, na qual citam meio mundo e uma sequência interminável de fatos desconectados. Aguapés Flutuam na Ribeira seria a transcrição um tanto floreada de uma dessas conversas. O livro não tem enredo nem protagonistas definidos, embora o autor gaste mais linhas com certa dúzia de personagens.

O cenário escolhido é Iporanga, cidadezinha do interior paulista situada à margem do rio Ribeira de Iguape. Dentre os personagens mais citados, temos o coronel Quinca Leme, chefe político na localidade que, logo no início do livro, apropria-se do sítio que pertencia a um seu antigo devedor, antecipando-se aos Roque, família influente que rivalizava com os Leme o poder político.

A pista de que o romance se concentraria na disputa pelo sítio Barra dos Pilões é enganosa. Os Roque reagem pacificamente. Os capítulos seguintes apresentam simplesmente a descrição dos tipos que habitam Iporanga, como seus respectivos costumes. O autor retorna aleatoriamente a este ou àquele personagem, mas sem nunca deixar de trazer diversos figurantes para a cena.

É possível reconhecer algumas tentativas de enredo ou desenvolvimento de personagens. O professor Eurípedes Canabrava, por exemplo, é um recém-chegado que logo se interessa por Leninha, neta de Quinca Leme. O livro, porém, não traz um único diálogo sequer que desenvolva tal relação, que mais parece um namoro infantil, cheio de joguinhos sobre quem está mais interessado.

O que preenche de fato as páginas de Aguapés são as trivialidades do cotidiano no interior: um pai que vai à escola reclamar porque o filho foi maltratado, funcionários públicos entretidos em jogos durante o expediente, a expectativa dos moradores pela chegada do correio, os fandangos noturnos em casas de reputação duvidosa, os embarques e desembarques na Ribeira, os festejos religiosos tradicionais, dentre outros episódios do gênero.

O que vi de positivo, contudo, nesta tentativa de romance é o olhar sensível do autor para com o cenário. Há uma paixão implícita nas descrições mais corriqueiras da obra, seja descrevendo o telhado da igreja matriz ou as dezenas de canoas que colorem a Ribeira de Iguape. Os registros de costumes e de linguagem também merecem elogio; mas a ausência de trama e de personagens bem desenvolvidos tornam a leitura arrastada e pouco fluida.

Jamais saberemos as intenções reais do autor de Aguapés Flutuam na Ribeira. Talvez ele fizesse o livro mais para si mesmo, na tentativa de registrar seu deslumbramento por uma terra querida, pouco preocupado com quantos leitores abandonariam o volume às primeiras páginas. No fim das contas, sinto-me até feliz por ter testemunhado esse deslumbramento.

Avaliação: ★★

Daniel Coutinho

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