domingo, 11 de setembro de 2022

Navio Ancorado, de Ondina Ferreira - RESENHA #188

O nome de Ondina Ferreira não me era estranho há bastante tempo, mas só agora pude finalmente conhecer sua obra, através de Navio Ancorado (1948). Trata-se de um grande talento do século passado que tem sido negligenciado pelos leitores de hoje. Ondina (1909-2000) é mais um desses achados com que me deparo às vezes, e que me fazem querer ler toda a produção literária de um autor.

Embora não seja um grande simpatizante dos recursos estilísticos que surgiram a partir do Modernismo, a escrita dessa paulista me seduziu do início ao fim. Valendo-se do artifício do “fluxo de consciência”, Ondina entrega-nos passagens permeadas de delicadeza e sensibilidade, dessas que fascinam o leitor com suas construções poéticas.

O romance, literatura moderna que foge do convencional, não possui protagonista, embora Ercília esteja no centro da narrativa, não como figura para a qual convergem os principais episódios da trama, mas como elemento que liga os vários núcleos que a compõem.

Ercília é uma mulher madura, independente e solitária. Após a morte da irmã, fechou-se completamente para o mundo, antipatizando a ideia de casar e ter filhos. Estando insatisfeita com a pensão onde morava, aceita dividir um apartamento com Berenice, sua prima que enviuvara recentemente.

Berenice e Ercília, mesmo com suas diferenças, entendem-se perfeitamente no novo lar, que Ercília compara a um grande navio ancorado, repleto de passageiros os mais diversos. A partir delas, passamos a ter contato com esses outros moradores do prédio, e conhecemos suas histórias, que se intercalam com as das primeiras personagens.

Berenice, mesmo viúva, alimenta uma paixão arrebatada pelo falecido esposo, e divide com a prima seus mais íntimos sentimentos através de várias lembranças revolvidas em sua memória. Ercília, por sua vez, fica profundamente impressionada com a imagem que cria de Nelson em sua mente, chegando a sentir-se apaixonada por ele.

Ao mesmo tempo que acompanhamos a intimidade dessas duas personagens, conhecemos as crises e dilemas dos outros “passageiros”. Áurea, por exemplo, é uma mulher tradicional e religiosa, mas que sofre grandes adversidades. Seu esposo, João Batista, além de estar cada vez mais distante, revela interesse por Jandira, outra integrante do “navio”. Esta, por sua vez, apaixona-se por Carlos Alberto, um viúvo intelectual e misterioso, que possui motivos muito particulares para não correspondê-la.

Os filhos de Áurea também são motivo de preocupação para ela. Iole possui uma perna defeituosa que a torna manca, o que requer cuidados e atenções especiais, como também a necessidade de se avaliar possíveis cirurgias que possam melhorar a qualidade de vida da filha. Gil, o filho mais velho, mantém um romance secreto com Maria Izabel, uma mulher casada. Esse vem a ser o motivo principal da insistência de Áurea com o marido para mudarem de residência.

O narrador de Ondina, com grande profundeza psicológica, passeia por todas essas histórias, revelando detalhes íntimos de todos os personagens que são alvo de suas lentes. Cada capítulo de Navio Ancorado é uma imersão pela mente humana. As situações cotidianas e triviais com que nos deparamos são apenas pretextos para revelações escancaradas sobre personagens profundamente reais.

Navio Ancorado certamente não é um livro feito para as maiorias. Ele requer leitores sensíveis às belezas do cotidiano e passíveis de reflexões intrigantes, que beiram o devaneio. Também não é o tipo de leitura que se faz em qualquer momento ou circunstância. O livro exige um determinado estado de espírito para ser aproveitado no que ele tem de melhor.

Avaliação: ★★★★

Daniel Coutinho

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