O nome de
Ondina Ferreira não me era estranho há bastante tempo, mas só agora pude
finalmente conhecer sua obra, através de Navio
Ancorado (1948). Trata-se de um grande talento do século passado que tem
sido negligenciado pelos leitores de hoje. Ondina (1909-2000) é mais um desses
achados com que me deparo às vezes, e que me fazem querer ler toda a produção
literária de um autor.
Embora não
seja um grande simpatizante dos recursos estilísticos que surgiram a partir do
Modernismo, a escrita dessa paulista me seduziu do início ao fim. Valendo-se do
artifício do “fluxo de consciência”, Ondina entrega-nos passagens permeadas de
delicadeza e sensibilidade, dessas que fascinam o leitor com suas construções poéticas.
O romance,
literatura moderna que foge do convencional, não possui protagonista, embora
Ercília esteja no centro da narrativa, não como figura para a qual convergem os
principais episódios da trama, mas como elemento que liga os vários núcleos que
a compõem.
Ercília é
uma mulher madura, independente e solitária. Após a morte da irmã, fechou-se
completamente para o mundo, antipatizando a ideia de casar e ter filhos.
Estando insatisfeita com a pensão onde morava, aceita dividir um apartamento
com Berenice, sua prima que enviuvara recentemente.
Berenice e
Ercília, mesmo com suas diferenças, entendem-se perfeitamente no novo lar, que
Ercília compara a um grande navio ancorado, repleto de passageiros os mais
diversos. A partir delas, passamos a ter contato com esses outros moradores do
prédio, e conhecemos suas histórias, que se intercalam com as das primeiras
personagens.
Berenice,
mesmo viúva, alimenta uma paixão arrebatada pelo falecido esposo, e divide com
a prima seus mais íntimos sentimentos através de várias lembranças revolvidas
em sua memória. Ercília, por sua vez, fica profundamente impressionada com a
imagem que cria de Nelson em sua mente, chegando a sentir-se apaixonada por
ele.
Os filhos
de Áurea também são motivo de preocupação para ela. Iole possui uma perna
defeituosa que a torna manca, o que requer cuidados e atenções especiais, como
também a necessidade de se avaliar possíveis cirurgias que possam melhorar a
qualidade de vida da filha. Gil, o filho mais velho, mantém um romance secreto
com Maria Izabel, uma mulher casada. Esse vem a ser o motivo principal da
insistência de Áurea com o marido para mudarem de residência.
O narrador
de Ondina, com grande profundeza psicológica, passeia por todas essas
histórias, revelando detalhes íntimos de todos os personagens que são alvo de
suas lentes. Cada capítulo de Navio
Ancorado é uma imersão pela mente humana. As situações cotidianas e
triviais com que nos deparamos são apenas pretextos para revelações
escancaradas sobre personagens profundamente reais.
Navio Ancorado certamente não é um livro feito para
as maiorias. Ele requer leitores sensíveis às belezas do cotidiano e passíveis
de reflexões intrigantes, que beiram o devaneio. Também não é o tipo de leitura
que se faz em qualquer momento ou circunstância. O livro exige um determinado
estado de espírito para ser aproveitado no que ele tem de melhor.
Avaliação: ★★★★
Daniel Coutinho
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