Ainda não tinha me aventurado pelo Shakespeare
comediógrafo. Só havia lido as tragédias mais famosas. Não me causou grande
surpresa o tom humorístico do bardo. Quem já leu as tragédias bem sabe que o
senso de humor shakespeariano está sempre rondando a cena dramática, conferindo
um toque de suavidade que faz um contraponto inteligente com o trágico.
Barbara Heliodora acredita que A Megera Domada
tenha sido composta em 1593. Existe uma grande possibilidade do núcleo
principal ter sido adaptado de outra comédia inglesa (hoje dada como perdida)
de título quase homônimo. O núcleo secundário é uma releitura da comédia I
Suppositi, de Ludovico Ariosto.
Temos um divertido prólogo-moldura na comédia, que introduz
o tom hilário da peça com muita graça. Nele, um funileiro bêbado é ludibriado
por um lorde trocista que faz o pobre homem acreditar que na verdade é um nobre
rico. Convencido de que sua vida de homem simples fora um devaneio de longos
anos, o funileiro recebe de bom grado mil regalias, inclusive a oportunidade de
assistir a uma curiosa comédia, que é nosso objeto principal. Pareceu-me
lamentável que Shakespeare não tenha acrescentado um epílogo onde retomasse o
artifício do prólogo, deixando assim como que uma ponta solta.
Passando ao argumento principal, a história se
passa em Pádua, na Itália, e se concentra basicamente nos lances amorosos das
filhas de Batista. Bianca, a filha mais nova, possui muitos pretendentes, mas
seu pai se nega a casá-la antes de Katherina, a filha mais velha. Esta, de
gênio irascível, afugenta todos os homens que se aproximam dela, e por isso é
uma “megera”.
Mas os vários pretendentes de Bianca terão uma luz
de esperança na figura de Petrucchio. Este “cavalheiro” de Verona aproxima-se
de Katherina, inicialmente motivado pela riqueza da jovem, mas logo depois
acalentando um prazer pelo desafio de possuí-la. Batista, não querendo perder a
oportunidade de casar a filha geniosa, consente imediatamente no casamento,
mesmo Katherina não demonstrando interesse no enlace.
Casados, Katherina e Petrucchio passam a lidar com
suas diferenças, e isso não se dá certamente de forma amigável. O método do
esposo para “domar sua megera” é bem o que prega um ditado popular daqui do
Ceará: “Remédio pra doido é doido e meio”. Assim, ele potencializa os defeitos
da esposa em si próprio, mostrando-se irado, desalmado e intransigente em todas
as situações.
Há uma discussão ferrenha em torno desta peça no
que se refere ao machismo que ela aparentemente expõe. O comportamento radical
de Petrucchio chega mesmo a ser irritante, e a forma passiva como Katherina reage
às ações do marido causa incômodo no espectador, mormente no espectador
contemporâneo. Mas essa imagem da fragilidade cedendo à força bruta esconde sob
sua superfície um outro ponto que gostaria de destacar.
É possível perceber uma tensão sexual muito forte nas
cenas entre Katherina e Petrucchio. Ela, consciente de que não tinha as
qualidades da irmã, deveria se sentir inferior e ter mesmo algum complexo de
aparência. A insistência de Petrucchio por “domá-la” talvez que até a
excitasse. Barbara Heliodora chega a falar de amor à primeira vista, além de entender,
na aplicação do método de Petruchio, um jogo consensual que resultará na
conciliação do casal. Mas a mim me pareceu que Katherina surpreende-se consigo
mesma, ou com impulsos de seu próprio corpo que ela não supunha tão
determinantes numa mulher. Na minha leitura, essa atração inevitável pelo ser
que se empenha por ela é que a faz ceder, independentemente do machismo que
possa ou não haver em cena.
O núcleo de Bianca e seus pretendentes é mais
aplicável à comédia, e de fato diverte, embora não tenha ganhado o meu
interesse como a tensão entre Katherina e Petrucchio. Shakespeare usa e abusa
de disfarces, mentiras e trapaças que divertem o público, ao tempo que criticam
os jogos de poder e interesse sugeridos em cena.
Sendo honesto, eu esperava apreciar mais A Megera
Domada, que é até agora, das peças que li do bardo, a que menos gostei.
Estarei mais inclinado às tragédias? Talvez. Mas o que mais me incomodou na
presente comédia foi uma impressão de insuficiência, como se a parte que mais
me interessou não tivesse tido o espaço devido. Mas, ao final, ler Shakespeare
nunca será empregar mal o tempo. É sempre um novo aprendizado.
Avaliação: ★★★
Daniel
Coutinho
***
Instagram: @autordanielcoutinho
E-mail para contato: autordanielcoutinho@gmail.com