sábado, 7 de junho de 2025

A Megera Domada (The Taming of the Shrew), de William Shakespeare - RESENHA #219

Ainda não tinha me aventurado pelo Shakespeare comediógrafo. Só havia lido as tragédias mais famosas. Não me causou grande surpresa o tom humorístico do bardo. Quem já leu as tragédias bem sabe que o senso de humor shakespeariano está sempre rondando a cena dramática, conferindo um toque de suavidade que faz um contraponto inteligente com o trágico.

Barbara Heliodora acredita que A Megera Domada tenha sido composta em 1593. Existe uma grande possibilidade do núcleo principal ter sido adaptado de outra comédia inglesa (hoje dada como perdida) de título quase homônimo. O núcleo secundário é uma releitura da comédia I Suppositi, de Ludovico Ariosto.

Temos um divertido prólogo-moldura na comédia, que introduz o tom hilário da peça com muita graça. Nele, um funileiro bêbado é ludibriado por um lorde trocista que faz o pobre homem acreditar que na verdade é um nobre rico. Convencido de que sua vida de homem simples fora um devaneio de longos anos, o funileiro recebe de bom grado mil regalias, inclusive a oportunidade de assistir a uma curiosa comédia, que é nosso objeto principal. Pareceu-me lamentável que Shakespeare não tenha acrescentado um epílogo onde retomasse o artifício do prólogo, deixando assim como que uma ponta solta.

Passando ao argumento principal, a história se passa em Pádua, na Itália, e se concentra basicamente nos lances amorosos das filhas de Batista. Bianca, a filha mais nova, possui muitos pretendentes, mas seu pai se nega a casá-la antes de Katherina, a filha mais velha. Esta, de gênio irascível, afugenta todos os homens que se aproximam dela, e por isso é uma “megera”.

Mas os vários pretendentes de Bianca terão uma luz de esperança na figura de Petrucchio. Este “cavalheiro” de Verona aproxima-se de Katherina, inicialmente motivado pela riqueza da jovem, mas logo depois acalentando um prazer pelo desafio de possuí-la. Batista, não querendo perder a oportunidade de casar a filha geniosa, consente imediatamente no casamento, mesmo Katherina não demonstrando interesse no enlace.

Casados, Katherina e Petrucchio passam a lidar com suas diferenças, e isso não se dá certamente de forma amigável. O método do esposo para “domar sua megera” é bem o que prega um ditado popular daqui do Ceará: “Remédio pra doido é doido e meio”. Assim, ele potencializa os defeitos da esposa em si próprio, mostrando-se irado, desalmado e intransigente em todas as situações.

Há uma discussão ferrenha em torno desta peça no que se refere ao machismo que ela aparentemente expõe. O comportamento radical de Petrucchio chega mesmo a ser irritante, e a forma passiva como Katherina reage às ações do marido causa incômodo no espectador, mormente no espectador contemporâneo. Mas essa imagem da fragilidade cedendo à força bruta esconde sob sua superfície um outro ponto que gostaria de destacar.

É possível perceber uma tensão sexual muito forte nas cenas entre Katherina e Petrucchio. Ela, consciente de que não tinha as qualidades da irmã, deveria se sentir inferior e ter mesmo algum complexo de aparência. A insistência de Petrucchio por “domá-la” talvez que até a excitasse. Barbara Heliodora chega a falar de amor à primeira vista, além de entender, na aplicação do método de Petruchio, um jogo consensual que resultará na conciliação do casal. Mas a mim me pareceu que Katherina surpreende-se consigo mesma, ou com impulsos de seu próprio corpo que ela não supunha tão determinantes numa mulher. Na minha leitura, essa atração inevitável pelo ser que se empenha por ela é que a faz ceder, independentemente do machismo que possa ou não haver em cena.

O núcleo de Bianca e seus pretendentes é mais aplicável à comédia, e de fato diverte, embora não tenha ganhado o meu interesse como a tensão entre Katherina e Petrucchio. Shakespeare usa e abusa de disfarces, mentiras e trapaças que divertem o público, ao tempo que criticam os jogos de poder e interesse sugeridos em cena.

Sendo honesto, eu esperava apreciar mais A Megera Domada, que é até agora, das peças que li do bardo, a que menos gostei. Estarei mais inclinado às tragédias? Talvez. Mas o que mais me incomodou na presente comédia foi uma impressão de insuficiência, como se a parte que mais me interessou não tivesse tido o espaço devido. Mas, ao final, ler Shakespeare nunca será empregar mal o tempo. É sempre um novo aprendizado.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

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sábado, 24 de maio de 2025

Um Amor de Mulher, de Leonel de Alencar - RESENHA #218

Apaixonado que sou por José de Alencar, costumo me interessar por diversos assuntos literários relacionados a ele. Qual não foi a minha surpresa ao descobrir que Alencar tinha um irmão escritor! E pouquíssima gente sabe disso. Eu descobri o fato por acaso, enquanto consultava cronologias literárias do pesquisador Sérgio Barcellos Ximenes. Imediatamente quis trazer a obra de Leonel de Alencar para meu projeto “Editora Oitocentista”, do Instagram, no qual, em parceria com alguns colaboradores, realizo o resgate de obras literárias do século XIX que ficaram esquecidas no tempo.

Decidi começar por Um Amor de Mulher, seu romance de estreia, que nunca havia sido publicado em livro. Saiu em folhetins do Jornal das Senhoras, periódico carioca que o publicou entre 28 de agosto de 1853 e 9 de abril de 1854. Leonel assinava os capítulos com as iniciais “X. Y.”, já utilizadas anteriormente na publicação do seu conto “A confissão de um suicida” (1853), na mesma folha.

O romance começou a ser escrito provavelmente quando Leonel estava prestes a concluir o curso de Direito, em São Paulo. Isso explica a atmosfera de república de estudantes, que funciona como moldura na primeira parte da obra. Ele chega a citar seu próprio nome no Capítulo VI, quando é mencionada sua participação no aniversário da sociedade acadêmica “Ateneu Paulistano”, da qual fez parte.

Mas tratemos do romance em si!

Além da narrativa principal, Um Amor de Mulher possui uma narrativa-moldura. O narrador (que seguramente é o próprio Leonel) está num grupo de estudantes, no quarto de um deles. Os amigos discutem os aborrecimentos da vida em São Paulo, que não oferece os vários divertimentos do Rio de Janeiro. Para curarem-se do tédio, um deles (que não é o narrador-personagem) decide relatar um caso passional que ocorrera em Pernambuco uma década antes.

Este relato constitui a narrativa principal, que segue uma divisão de capítulos diferente da que é feita na narrativa-moldura. A primeira cena já é bastante trivial: um estudante em visita à casa da namorada. Fernando e Lucila parecem formar um casal promissor, mas nota-se uma grande tristeza no semblante do moço, o que não passa despercebido à Lucila.

O mistério desse pesar não dura muito tempo. Fernando admite ter feito uma promessa de compromisso à sua prima Júlia, testemunhada pelo pai dela em seu leito de morte. A impulsividade da adolescência agora pesa em sua vida presente, e o dever se antepõe à sua felicidade com Lucila.

A partir dessa premissa, temos um texto que segue os padrões românticos, cheio de idealizações exageradas e descrições idílicas. Mas ao romance falta enredo: não se desenvolvem cenas relevantes que sustentem a narrativa do introito ao desfecho. A ausência da figura de um vilão também contribui com o ritmo maçante da obra, que não vai muito além das cenas de ciúmes e confidências amorosas.

Ao lado disso, não temos perspectivas muito melhores na narrativa-moldura. Os estudantes interrompem frequentemente o relato com seus comentários jocosos e zombeteiros. Na verdade, desde o início eles demonstram desinteresse pela história do amigo, chegando a dormir durante a narração, para depois abandoná-la de vez. O narrador-personagem (X. Y. ou Leonel) é o único a acompanhá-la até o final, motivado pelo interesse de recontá-la em sua coluna do Jornal das Senhoras.

Dito isso, todos pensarão que o livro me pareceu detestável, mas minha impressão felizmente foi outra. Há uma graça peculiar no manejo dos recursos estilísticos (que são vários e perpassam todo o livro): de repente, acompanhamos o narrador e o romancista a bordo do vapor “Josephina”, ambos trocando confidências; em outro momento, quando da estadia do romancista em Petrópolis, este prossegue seu relato através de cartas; mais adiante, o romance é retomado por intermédio de um mensageiro bêbado; e um dos capítulos finais chega a ser narrado por uma personagem real da história contada.

É notório que Leonel não tinha uma centelha do talento literário de seu irmão mais velho, e ele certamente tinha essa consciência. Mas é bonito ver como isso não o impediu de contribuir com a literatura da forma que pôde, como neste romance cor-de-rosa emoldurado de crônica jornalística.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

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sábado, 10 de maio de 2025

Vamos Aquecer o Sol, de José Mauro de Vasconcelos - RESENHA #217

Considerando as fortes impressões que me causou O Meu Pé de Laranja Lima, que li pela primeira vez há poucos anos, é até muito natural que me interessasse pelas continuações. Foi assim que cheguei a Vamos Aquecer o Sol (1974), curioso e sedento por reencontrar o adorável Zezé.

Nosso querido personagem tem agora onze anos e já não mora com sua família no Rio de Janeiro. Seu padrinho, um médico residente em Natal, decide adotar Zezé por um tempo, para que o garoto pudesse estudar e ter melhores condições de vida. Embora, à primeira vista, a situação do personagem pareça ter melhorado significativamente, ele segue sendo aquela criança carente de amor e atenção, já que é mais tratado como agregado do que como parente.

Mas, para alegria geral dos leitores, Zezé continua sendo o menino sensível e fantasioso de sempre. Na falta de uma figura amiga em seu novo lar, ele decide fazer amizade com um sapo. Mas, obviamente, não se trata de um sapo comum. Adão usa óculos, cachecol e carrega uma malinha com todos os seus pertences; como se tudo isso já não bastasse, ele vai morar dentro do coração de Zezé. E, claro, nem preciso dizer que Adão é um sapo falante, e que ele e Zezé terão longas conversas por todo o livro.

Para suprir a figura do pai amoroso, tão bruscamente tirada dele no livro anterior, Zezé toma o grande ator Maurice Chevalier por seu pai. Maurice, após uma rotina exaustiva de gravações nos estúdios de cinema, aparece quase todas as noites ao seu querido “monpti” (que seria uma abreviação do francês “mon petit”). Eles conversam bastante também, até que Zezé adormeça depois de receber o beijo de boa noite daquele afetuoso pai.

Desde o livro anterior está claro que o grande trunfo de Zezé é a imaginação. E é simplesmente maravilhoso quando vemos o impacto dela na vida do garoto. As fantasias do personagem são tão vívidas, que por vezes elas soam mais reais que personagens de carne e osso, e que, sabemos, foram todos inspirados em pessoas reais.

Felizmente, dentre as figuras “reais”, temos o simpático irmão Fayolle, membro da ordem religiosa que coordena o colégio de Zezé. Fayolle está sempre salvando a pele de seu pupilo, pois o pestinha de O Meu Pé de Laranja Lima segue intacto nesta nova obra.

As travessuras de Zezé rendem ótimos capítulos para Vamos Aquecer o Sol. Temos desde roubo de fruta no jardim alheio a supostas aparições de almas do outro mundo. Em meio a todas essas diabruras, nosso pequeno passa por poucas e boas, chegando a ser quase devorado por um tubarão.

Há, contudo, uma quebra de ritmo na parte final do romance, quando o autor faz alguns saltos temporais. Os episódios transcorrem mais apressadamente. Acredito que José Mauro, percebendo que o livro já estava bastante encorpado (Vamos Aquecer o Sol é o mais extenso da trilogia), optou por correr um pouco nos capítulos da adolescência do protagonista.

Em compensação, o capítulo final é uma preciosidade que só escritores de pena sensível, como José Mauro, conseguem escrever; ele encerra o livro com um misto de emoção e criatividade, deixando o leitor plenamente satisfeito. No fim das contas, Vamos Aquecer o Sol é justamente isso: esse misto de artifícios e sentimentos, que nos mantém presos à leitura e quase sempre indecisos sobre se ficamos tristes ou felizes com ela.

Avaliação: ★★★★

Daniel Coutinho

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terça-feira, 1 de abril de 2025

As Aventuras do Sr. Pickwick (The Pickwick Papers), de Charles Dickens - RESENHA #216

Meu primeiro contato com Dickens foi através de duas de suas famosas novelas natalinas, que muito me agradaram quando as li. Essa experiência positiva me deixou ainda mais curioso por conhecer os colossais romances do maior escritor vitoriano, e aqui faço referência mesmo à extensão das obras, em sua maioria calhamaços de 800 páginas.

Seguindo minha preferência pessoal de conhecer as obras de um autor em ordem cronológica, decidi que o primeiro tijolão a ser devorado seria As Aventuras do Sr. Pickwick (1837), romance de estreia de Dickens. Mas, de antemão, previno a todos que desejem conhecer a importante obra do criador de David Copperfield que não sigam pelo mesmo caminho. Falo baseado não apenas na minha experiência pessoal, mas em comentários e resenhas de outros leitores, que acabei consultando após concluir a leitura.

Como é natural a uma obra de estreia, As Aventuras do Sr. Pickwick é possivelmente o romance mais problemático de Charles Dickens. Nele evidentemente já verificamos muitas das qualidades do prosador inglês, que era excelente na caracterização de personagens e nas descrições meticulosas. Mas Dickens, que aplicara com sucesso sua perícia de observador na crônica jornalística, ainda não conhecia com propriedade o território do romance.

É possível que as circunstâncias de publicação do Pickwick justifiquem seus problemas mais graves. E aqui não estou entrando na questão do “romance de folhetim” ou do “romance de entretenimento”. Quem me conhece sabe perfeitamente que sou um apreciador confesso tanto de um quanto do outro, e que não acredito que tal gênero ou tal formato tornarão uma obra obrigatoriamente ruim. As circunstâncias às quais aludo referem-se aos propósitos incertos do que acabou sendo o primeiro romance de Dickens. Muito provavelmente, ao receber o convite para publicar uma obra de fôlego em periódico, o novel escritor iniciou o trabalho sem saber exatamente onde aquilo terminaria.

À primeira vista, a proposta parece ser a criação de uma novela à moda antiga, na qual temos várias pequenas histórias sucessivas com os personagens de sempre. Mas, em determinado momento, tramas maiores começam a ganhar espaço ao longo do livro, aproximando-o mais do romance tradicional, onde as células dramáticas se desenvolvem simultaneamente. A impressão final é que o livro foi concebido quase que completamente à base de improviso, e que o autor ia compondo o que convinha às necessidades do periódico.

Chama bastante atenção a queda de ritmo na segunda metade da obra. É quando fica mais perceptível a intenção do autor em esticar a narrativa, do modo como ocorre até hoje nas telenovelas de boa audiência. O sucesso de Pickwick no jornal exigia que o personagem continuasse protagonizando suas estrepolias, acompanhado sempre de seu criado leal, o impagável Sam Weller.

Sobre o humor em Pickwick, é inegável que funciona bastante, especialmente na primeira metade. As situações embaraçosas, os mal-entendidos, os personagens caricatos tornam os episódios bastante hilários. Há contudo um excesso de pancadaria que lembra o humor pastelão de histórias como as do seriado Chaves.

Outro detalhe que incomoda bastante é a necessidade inexplicável do autor por identificar os personagens durante os diálogos, ainda que esteja mais do que explícito que se trata de uma conversa entre duas pessoas. Isso ocorre tantas vezes, que deixa qualquer leitor irritado. Para exemplificar, logo no início do Capítulo XXII temos claramente uma conversa entre Sam Weller e seu pai. Como se trata de um trecho longo, transcreverei resumidamente apenas as indicações do narrador: “perguntou o sr. Weller ao afetuoso filho/replicou o sr. Weller, o moço/indagou o pai/respondeu o filho/replicou o mais velho dos Wellers/tornou o sr. Samuel/replicou o pai, com um suspiro/continou o sr. Weller/replicou Sammy/disse o sr. Weller.” (págs. 314 e 315). Dickens julgava seus leitores tão burros, que não pudessem identificar as falas de um e de outro, ou só queria completar o número de páginas a serem entregues?

A dispersão da narrativa se evidencia fortemente no fato de que não há um desenvolvimento lógico dos personagens. A lealdade incondicional de Sam Weller para com o amo, por exemplo, não tem uma explicação clara. Os amigos do Sr. Pickwick também não são devidamente aproveitados/desenvolvidos. Dois deles contraem casamentos precipitados na etapa final do livro, e um terceiro praticamente desaparece.

Há uma tentativa de se criar um vilão na figura do Sr. Jingle, mas mesmo ele, que a princípio prometia movimentar a história, acaba tendo um destino estupidamente insosso. Povoam ainda as 800 páginas do Pickwick uma miríade de personagens descartáveis que aparecem/desaparecem/reaparecem magicamente, sendo impossível lembrar de todos eles.

É lamentável que, ao final, tenha ficado com esta horrenda impressão de que As Aventuras do Sr. Pickwick é uma tremenda “encheção de linguiça”. Não acho, contudo, que sua leitura seja uma completa perda de tempo. A primeira metade, como já mencionei, é repleta de bons momentos, sem falar dos contos enxertados que aparecem ocasionalmente e que dão um refresco à narrativa. Uma versão compactada certamente causaria melhor impressão. Porque 800 páginas... Ai, ai, ai! David Copperfield, Nicholas Nickleby, Grandes Esperanças... Será que dou conta?

Avaliação: ★★

Daniel Coutinho

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sábado, 15 de fevereiro de 2025

Em Surdina, de Lúcia Miguel Pereira - RESENHA #215

Já conhecia o trabalho da escritora Lúcia Miguel Pereira (1901-1959) como crítica literária, mas não imaginava a grandeza de sua prosa de ficção. Dentre os muitos títulos publicados pela finada “Coleção Saraiva”, o romance Em Surdina havia figurado num dos primeiros anos. A sinopse sugeria uma narrativa interessante, e eu certamente não poderia deixá-la passar.

Em Surdina (1933) nos apresenta Cecília, uma jovem aparentemente simples, mas que guardava consigo pensamentos profundos sobre a vida. Ao concluir a escola, a expectativa da família pelo seu casamento a deixa desconfortável e reflexiva sobre seus próprios interesses e seu lugar no mundo.

Logo no começo do livro, Cecília rejeita um pretendente. Ela se justifica com a desculpa de que o moço em questão não atendia às suas exigências intelectuais, mas intimamente ela reconhece que simplesmente não está interessada.

O interesse maior de Cecília, nesse ponto de sua vida, é descobrir um sentido para sua existência. Ao passar, um dia, em frente a antiga escola, ela tem um insight que a faz repensar sobre os planos e sonhos da juventude. Ela não vê a irmã mais velha, Heloísa, como um modelo inspirador. Os papéis de esposa e mãe não lhe deslumbram como a tantas outras mulheres.

Um vazio perturbador faz com que ela busque uma ocupação; mas é logo desestimulada pelo pai, Dr. Vieira, que rejeita a ajuda da filha na organização dos papéis relacionados aos seus pacientes. O pai de Cecília também não a encoraja a buscar trabalho, o que, para ele, seria vergonhoso para uma moça de família da classe média.

Desocupada e livre de maiores obrigações, Cecília vê sua vida passar em surdina entre os membros da família, os quais ela observa de perto, analítica. O irmão mais velho, Cláudio, é um homem calculista, cujo maior prazer é especular no mercado financeiro. Os irmãos gêmeos Antônio e João estudam engenharia, mas apenas o primeiro demonstra vocação. João descobre-se um homem de ideias políticas e literárias e, contra a vontade do pai, aspira por ser escritor.

Os demais parentes não são menos interessantes. Tia Marina, que vive com a família, é uma solteirona cética e metódica; e por diversas vezes é apontada como um fantasma do que Cecília poderia se tornar. Os parentes da mãe falecida também são contemplados. A avó materna, viúva, embora muito amorosa com os netos, alimenta uma intriga com o Dr. Vieira. Tia Sinhazinha é uma figura polêmica, perante a família, por ousar deixar o marido que a fazia infeliz.

Assim, a vida de Cecília vai passando entre divertimentos frívolos e cuidados com a família, sobretudo com Baby, a filha mais velha de Heloísa. O aparecimento de Paulo, sócio de Cláudio, no entanto, confere uma nova alegria aos dias da jovem solteira. Paulo e Cecília tornam-se grandes amigos e cultivam uma admiração mútua, mas ela não o vê como um marido em potencial. Paulo é descrito como um homem de poucos atrativos físicos; e, a esse tempo, Cecília demonstra interesse amoroso por um tenente, mas sem ter com este a conexão espiritual compartilhada com o sócio do irmão.

Essa ideia geral que esbocei da substância do livro já deve revelar, em parte, as qualidades inegáveis de Em Surdina. Trata-se de um romance vívido, com tipos incrivelmente reais vivendo suas vidas cheias de erros e acertos, como todos nós. Os acontecimentos se dão de forma natural e espontânea, e tudo na obra parece crível e real.

A autora, em diversos momentos da narrativa, propõe a análise, a reflexão, mas a densidade do texto não apela para rebuscamentos e jogos de palavras desnecessários. A linguagem é sempre limpa e objetiva, como se fosse um propósito de Lúcia promover a compreensão dos dilemas de Cecília. Uma vez que nenhum personagem parece compreendê-la, cabe ao leitor consumar esse entendimento.

Faço apenas uma ressalva quanto à queda de ritmo na segunda metade, especificamente após o episódio da epidemia de gripe. A narrativa nem de longe parece ruim nesses momentos, mas perde um pouco do brilho inicial. Em Surdina, como um todo, é uma obra excelente, embora subestimada em nosso tempo.

Avaliação: ★★★★

Daniel Coutinho

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sábado, 4 de janeiro de 2025

TOP 5 - MELHORES LEITURAS DE 2024!!!

Muitas demandas comprometeram o meu tempo de leitura em 2024; mas, mesmo assim, tive o prazer de conhecer alguns livros maravilhosos que eu não poderia deixar de enaltecer nessa lista já tão conhecida com as melhores leituras do ano. Vamos a ela!

  

# 5º lugar  CORREIO DA ROÇA, de Júlia Lopes de Almeida (3 estrelas)

Todos aqui sabem que D. Júlia já é minha escritora favorita da vida. Em 2023, a melhor leitura do ano foi um livro dela, e seus livros, de modo geral, têm me surpreendido bastante. Este Correio da Roça, por ter uma proposta diferente dos demais, sendo mais didático e menos literário, acabou não agradando tanto. Mas a autora de A Falência, mesmo num livro menor, ainda consegue ser grandiosa. Não fossem os fins específicos do livro, a galeria de personagens deste romance epistolar poderia ter rendido outra narrativa campesina da envergadura de A Família Medeiros. Mesmo assim, Correio da Roça consegue ser singelo e agradável, entregando uma leveza que, em alguns momentos, é extremamente necessária.


# 4º lugar AS FATALIDADES DE DOUS JOVENS, de Teixeira e Sousa (3 estrelas)

Eu quase dei “4 estrelas” a este segundo romance de Teixeira e Sousa, tamanho foi o crescimento demonstrado pelo autor em um breve espaço de tempo. Os primeiros capítulos das Fatalidades são deliciosíssimos e me conquistaram de imediato. O livro segue maravilhoso até mais da primeira metade, mas a parte final, a meu ver, deixou muito a desejar. A conduta impiedosa de Geraldino me pareceu pouco condizente com seu perfil de mocinho romântico. Mas há tanta matéria interessante no romance, além de personagens secundários que roubam a cena diversas vezes, que não estou bem seguro de ter sido justo em minha avaliação.


# 3º lugar  OS ROMANCES DA SEMANA, de Joaquim Manuel de Macedo (4 estrelas)

Há quanto tempo não tínhamos um Dr. Macedinho por aqui, não é mesmo? Eu já estava com saudades, e esta coletânea de contos e novelas foi uma escolha muito acertada, por me mostrar várias facetas de um mesmo ficcionista. Certamente não há nada de extraordinário em nenhuma das narrativas deste livro, mas o estilo de Macedo, que é um excelente contador de histórias, nos cativa de forma tal, que parecemos crianças no colo do vovô. Um livro simplesmente delicioso!


# 2º lugar  ANGÉLICA, de Maria José Dupré (4 estrelas)

Estou amando conhecer a fase final da ficção da autora de Éramos Seis, ao mesmo tempo que lamento estar esgotando uma fonte tão preciosa. Socorro, que só me resta mais um romance! Angélica nos revela uma faceta diferente da romancista, que aqui faz uso do suspense psicológico. Acompanhamos a trajetória da “garotinha ingênua” pelos olhos de Constança, que vê na pequena Angélica uma possibilidade para realizar-se como mãe; mas o tempo acaba trazendo à tona revelações que mudam completamente o rumo dessa história. A modernidade de Angélica, tanto na forma quanto na substância, me fez pensar que este livro precisa ser redescoberto urgentemente pelo leitor contemporâneo.


# 1º lugar  A MORGADINHA DOS CANAVIAIS, de Júlio Dinis (5 estrelas)

Em todos os anos, graças a Deus, vivemos momentos felizes. E posso dizer, com toda certeza, que fui feliz lendo este livro! Quando penso nas leituras do ano passado, lembro imediatamente da Morgadinha; quando penso nos grandes livros que li recentemente, o romance de Júlio Dinis segue sendo lembrado. A Morgadinha dos Canaviais é uma verdadeira obra-prima da literatura portuguesa. É o tipo de livro que por si só já é um acontecimento. Não entendo, de verdade, o motivo de ser tão pouco conhecido. Talvez ainda persista certo preconceito com a literatura romântica, mesmo quando falamos de clássicos. Mas a grandeza da Morgadinha supera qualquer rótulo ou estereótipo de época. É um romance cheio de vida, com tipos muito realistas e episódios bem-humorados. Finalmente, A Morgadinha dos Canaviais é desses livros que, quando concluídos, nos fazem vibrar de contentamento por termos vivido uma experiência incrível.


Daniel Coutinho

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domingo, 15 de dezembro de 2024

Correio da Roça, de Júlia Lopes de Almeida - RESENHA #214

Correio da Roça é um caso à parte na obra romanesca de Júlia Lopes de Almeida. Publicado inicialmente em folhetins d’O País entre 1909 e 1910, e posteriormente em livro (1913), a obra funciona como um romance didático, cujos fins estavam bem delineados desde antes de sua composição.

D. Júlia pretendia instruir seu público, predominantemente feminino, quanto aos benefícios advindos do cultivo da terra e da criação de animais. Para tanto, ela se utiliza de um romance epistolar que explora uma situação bastante conveniente às suas intenções: Maria, após a morte do marido, vê-se em apertos financeiros, sendo obrigada a partir com as quatro filhas para uma fazenda na serra, única propriedade que lhe restara.

É a partir desse contexto que se inicia uma assídua correspondência, primeiramente entre Maria e Fernanda, uma amiga da capital, mas que logo depois envolve outros personagens. Maria lamenta-se com a amiga, relatando a vida tediosa na serra, como também a insatisfação de suas filhas, meninas instruídas que ficavam, portanto, impossibilitadas de fazerem bom uso de seus conhecimentos variados.

Fernanda, de sua parte, surpreende Maria por enxergar a situação sob outra perspectiva; a seu ver, todo o conhecimento das quatro filhas da amiga poderia ser de grande utilidade perante aquelas novas circunstâncias. Fernanda enumera várias possibilidades de ocupações, que vão desde o cultivo de violetas até a criação de novas estradas. Suas cartas são enriquecidas com informações que compreendem experiências do mundo todo, o que sugere claramente ser esta personagem um alter ego de D. Júlia.

As sugestões de Fernanda causam certo estranhamento a princípio, mas, quando aplicadas, elas revelam resultados inacreditáveis. Cecília, Cordélia, Joaninha e Clara dedicam-se a diferentes tarefas, que contemplam a educação dos filhos dos colonos, o cultivo de flores, a criação de um pomar e até mesmo a restauração de uma segunda fazenda menor, que Maria herdara do pai.

As atividades das meninas inevitavelmente as inserem na correspondência e, logo, outros personagens também tomam parte nela. É visível a preocupação da autora em não permitir que o livro se torne um manual sobre a vida no campo. Embora boa parte do texto se concentre nas obras de Maria e suas filhas, outros acontecimentos mais romanescos favorecem o ritmo da narrativa.

Correio da Roça, como esperado, causou um impacto bastante positivo, sendo reeditado pelo menos mais cinco vezes até o início da década de 30. Com a publicação de novos livros, mais direcionados e mais completos quanto ao tema, o romancete epistolar de D. Júlia acabou ficando ultrapassado, e talvez que fosse inteiramente esquecido, não fossem os aspectos literários que o conservaram.

Com ser um romance didático, Correio da Roça certamente não é livro para todos. Não é, portanto, a obra certa para quem deseja conhecer a ficção da autora de A Falência. Mas os apreciadores veteranos como eu acharão nas páginas desse livro o delicioso encanto, cuja fórmula D. Júlia conhecia tão bem.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

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