terça-feira, 27 de agosto de 2024

Os Romances da Semana, de Joaquim Manuel de Macedo - RESENHA #213

Macedo não foi um grande cultor das narrativas breves, mas chegou a publicar uns poucos contos e novelas, boa parte deles publicada na coletânea Os Romances da Semana (1861), cujos textos saíram anteriormente no periódico A Semana.

O volume abre com uma carta “Aos leitores”, na qual Macedo justifica a ligeireza com que foram concebidos aqueles trabalhos, totalmente despretensiosos e que estariam fadados ao esquecimento total, não fosse a ideia do autor de “ajuntar-lhes os restos para guardá-los em uma urna”. E, podemos dizer, que bom que lhe ocorrera tal ideia!

Os Romances da Semana trazem um conjunto delicioso de narrativas que, se não excelentes, são no mínimo agradáveis para passar o tempo. À exceção da última história, todas as outras são alegres e bem-humoradas, daquelas que combinam perfeitamente com um fim de tarde. Sendo apenas seis narrativas ao todo, comentarei cada uma individualmente.

“A bolsa de seda” é uma historinha ingênua e previsível, com um tom quase infantil. Não é das minhas preferidas do conjunto, mas é o que alguns leitores chamariam de “história fofa”. Após sonhar com o anjo da caridade em forma de moça, um jovem cavalheiro acredita encontrá-la casualmente na rua e decide, portanto, segui-la. Percebendo que a dama misteriosa estava de fato realizando obras de caridade, o jovem tenta descobrir sua identidade a partir de uma bolsa de seda que a moça carregava, uma vez que seu rosto estava sempre encoberto por um véu.

“O fim do mundo”, a despeito de seus ares de ficção científica, está mais para uma sátira político-social. Macedo fundamenta-se na crença popular de que um terrível cataclismo, provocado por um cometa que passaria pela Terra em 1856, destruiria o mundo inteiro. Longe de ser uma história de horror, “O fim do mundo” é das mais engraçadas da coletânea, tendo sido ainda mais para os contemporâneos de Macedo, pois o texto cita diversos nomes reais, como José Maria dos Reis, Paula Brito, Emílio Adet, dentre outros nomes conhecidos da época.

“O romance de uma velha” vem a ser o primeiro ponto alto do livro. É uma história divertidíssima onde Clemência, moça inexperiente, receberá uma lição um tanto amarga de sua velha tia, D. Violante, que mostrará à sobrinha o poder e influência do dinheiro sobre os homens. De fato, a respeitável anciã, que enriquecera em idade já avançada, atrai para si todos os pretendentes de Clemência, após divulgar-se que sua fortuna orçava pelos trezentos contos de réis.

“Uma paixão romântica” é outra maravilha do compilado. Talvez muitos leitores não concordem comigo, mas todo mundo tem os seus clichês favoritos, e um dos meus é aquele do rapaz que, depois de certo tempo ausente, retorna ao lar paterno onde acaba vivendo uma bela história de amor. Aqui a narrativa é tão deliciosamente trabalhada, que poderia render um romance completo. A parte final, contudo, traz um desfecho algo teatral que, a meu ver, não encaixa tão bem com o ritmo criado anteriormente; mas nada que estrague esta que talvez seja minha narrativa favorita do conjunto.

“Inocêncio” rivaliza com “Uma paixão romântica” o meu favoritismo. É sobre um jovem, como o próprio nome sugere, demasiadamente inocente. Inocêncio é o tipo do poeta sonhador que acredita que o mundo é um lar maravilhoso habitado por anjos que são a personificação da bondade, da nobreza e da honra. Seu padrinho, Geraldo-Risota, um tipo interessantíssimo cujo único consolo na vida é rir-se de tudo quanto é bom e ruim, tentará mostrar ao ingênuo Inocêncio que anjos podem não ser tão belos quanto se pintam.

Sempre me perguntei por que todos os livros que já li do doutor Macedinho eram alegres, felizes e bem-humorados. “O veneno das flores”, que encerra Os Romances da Semana, trouxe finalmente a resposta. Macedo não tinha boa mão com histórias tristes. É visível o esforço dele nesta última narrativa, sobretudo pela considerável extensão em relação às outras. Aqui ele recorre ao velho clichê da garota que é seduzida e abandonada pelo namorado, tendo um desfecho melodramático e lacrimejante. Ainda não li toda a obra de Joaquim Manuel de Macedo; portanto, não saberia dizer se ele publicou outras histórias tristes mais bem realizadas do que “O veneno das flores”. A saber, hem?

Não venho aqui dizer que Os Romances da Semana é um livro essencial e dos melhores que já li. É um bom livro, sem dúvida! Um passatempo agradável que certamente não será uma perda de tempo. Como é comum às coletâneas de contos e novelas, há histórias e histórias. E garanto que será um prazer descobrir qual será a sua.

Avaliação: ★★★★

Daniel Coutinho

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sábado, 10 de agosto de 2024

Aguapés Flutuam na Ribeira, de João de Sousa Ferraz - RESENHA #212

O reino da Literatura é habitado por vários espécimens: temos escritores, leitores, leitores-escritores, escritores-não-leitores (sim, eles existem!), dentre muitos outros. Mas um tipo que sempre me chamou bastante atenção é o “aspirante a escritor” e, vez por outra, acabo me deparando com algum deles.

Todas as pessoas estão capacitadas para a leitura e a escrita, embora muitas não explorem essas habilidades; havendo o desejo de desenvolvê-las, um sujeito pode estudar, consultar manuais, fazer cursos, etc., que se tornará possivelmente um ótimo redator: estará habilitado para a notícia, para a coluna de fofoca e para publicar livros que trazem títulos como “12 Regras para Alguma Coisa”.

Se o sujeito, porém, é um “aspirante a escritor de literatura”, o caso é mais complexo. Isto porque os poetas, ficcionistas, dramaturgos e artistas em geral já nascem com a centelha da arte crepitando nos miolos. É quase como uma condição não diagnosticada pela ciência. Na falta desta centelha, resta ao sujeito arriscar-se num território desconhecido, contando unicamente com sua boa vontade e talvez com o sonho ou ambição de tornar-se, por exemplo, um romancista. Daí é que surgem livros como Aguapés Flutuam na Ribeira (1969), do paulista João de Sousa Ferraz (1903-1988).

O título é dos mais poéticos, sem dúvida, sendo um excelente chamariz para leitores como eu. Desejando ter uma ideia do livro, busquei por uma sinopse, mas nada encontrei, nem mesmo nas orelhas do meu exemplar. Parecia que ninguém no mundo havia lido tal obra. Mas como isso nunca foi um empecilho para mim, fui descobrir do que se tratava.

Foi com prazer que li o primeiro capítulo de Aguapés Flutuam na Ribeira. Estava diante de um romance regionalista, gênero pelo qual sou apaixonado. Mas, logo nos capítulos seguintes, percebi que algo ali estava errado. Cauteloso, pensei: “Paciência, que, desses quinhentos personagens, uma dezena ganhará brevemente um desenvolvimento lógico na ‘trama’!”. O caso é que não houve trama nem desenvolvimento, mas sim outros quinhentos personagens.

Todo mundo já ouviu os pais, os tios ou os avós entretidos numa conversa longa, na qual citam meio mundo e uma sequência interminável de fatos desconectados. Aguapés Flutuam na Ribeira seria a transcrição um tanto floreada de uma dessas conversas. O livro não tem enredo nem protagonistas definidos, embora o autor gaste mais linhas com certa dúzia de personagens.

O cenário escolhido é Iporanga, cidadezinha do interior paulista situada à margem do rio Ribeira de Iguape. Dentre os personagens mais citados, temos o coronel Quinca Leme, chefe político na localidade que, logo no início do livro, apropria-se do sítio que pertencia a um seu antigo devedor, antecipando-se aos Roque, família influente que rivalizava com os Leme o poder político.

A pista de que o romance se concentraria na disputa pelo sítio Barra dos Pilões é enganosa. Os Roque reagem pacificamente. Os capítulos seguintes apresentam simplesmente a descrição dos tipos que habitam Iporanga, como seus respectivos costumes. O autor retorna aleatoriamente a este ou àquele personagem, mas sem nunca deixar de trazer diversos figurantes para a cena.

É possível reconhecer algumas tentativas de enredo ou desenvolvimento de personagens. O professor Eurípedes Canabrava, por exemplo, é um recém-chegado que logo se interessa por Leninha, neta de Quinca Leme. O livro, porém, não traz um único diálogo sequer que desenvolva tal relação, que mais parece um namoro infantil, cheio de joguinhos sobre quem está mais interessado.

O que preenche de fato as páginas de Aguapés são as trivialidades do cotidiano no interior: um pai que vai à escola reclamar porque o filho foi maltratado, funcionários públicos entretidos em jogos durante o expediente, a expectativa dos moradores pela chegada do correio, os fandangos noturnos em casas de reputação duvidosa, os embarques e desembarques na Ribeira, os festejos religiosos tradicionais, dentre outros episódios do gênero.

O que vi de positivo, contudo, nesta tentativa de romance é o olhar sensível do autor para com o cenário. Há uma paixão implícita nas descrições mais corriqueiras da obra, seja descrevendo o telhado da igreja matriz ou as dezenas de canoas que colorem a Ribeira de Iguape. Os registros de costumes e de linguagem também merecem elogio; mas a ausência de trama e de personagens bem desenvolvidos tornam a leitura arrastada e pouco fluida.

Jamais saberemos as intenções reais do autor de Aguapés Flutuam na Ribeira. Talvez ele fizesse o livro mais para si mesmo, na tentativa de registrar seu deslumbramento por uma terra querida, pouco preocupado com quantos leitores abandonariam o volume às primeiras páginas. No fim das contas, sinto-me até feliz por ter testemunhado esse deslumbramento.

Avaliação: ★★

Daniel Coutinho

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