Eu tinha
treze anos quando a minha vida mudou. O livro era Luzia-Homem, de Domingos Olímpio: uma obra bastante desafiadora
para alguém da minha idade/maturidade intelectual, mas inexplicavelmente
convidativa e atraente. Essa leitura, posso dizer, levou-me por um caminho sem
volta: o da literatura clássica. Até então eu só conhecia livros
infantojuvenis, que já me divertiam bastante naquela época; mas Luzia-Homem revelou-me um caminho mais
escabroso, porém indiscutivelmente recompensador.
Aquela
primeira leitura da obra-prima de Domingos Olímpio, obviamente, não foi
devidamente aproveitada. Foi a leitura do deslumbre, e eu pouco devo ter
absorvido do romance. Contudo, a camada mais superficial da obra já havia me
causado forte impressão, ao ponto de me motivar a conhecer outros clássicos.
Sempre que
gostava de um livro, empenhava-me por encontrar outros títulos do mesmo autor.
Foi assim com José de Alencar, Adolfo Caminha, Machado de Assis e tantos
outros. Era raro o autor do qual não encontrasse novos títulos para ler.
Domingos Olímpio, infelizmente, encaixava-se nesse pequeno grupo. As
bibliografias indicavam um segundo romance, O
Almirante, publicado em folhetins d’Os
Annaes entre 1904 e 1906. Na mesma folha apareceria O Uirapuru, que ficou inacabado devido à morte do autor. Encontrar
essas obras, sobretudo O Almirante
(que estava completo), tornou-se um sonho que eu julgava irrealizável.
Anos se
passaram e, em 2017, como quem não quer nada, acabei me deparando com as digitalizações
d’Os Annaes, disponibilizadas pelo
portal Brasiliana da USP, fonte esta que já me proporcionou grandes alegrias.
Estavam lá O Almirante, na íntegra,
mais os onze capítulos d’O Uirapuru;
e eu mal podia acreditar.
Impossível
seria não criar expectativas quanto àquela leitura; mas a ideia de ler algo
novo de Domingos Olímpio, por si só, já era incrivelmente empolgante. Agora que
isso finalmente aconteceu, não posso negar a intensidade da experiência, mas
também preciso admitir que o livro não me agradou da forma como esperava, além
de ser evidente sua distância da grandeza que foi Luzia-Homem.
O Almirante é um
romance ambientado no Rio de Janeiro. Apesar de tratar e refletir importantes
questões humanas, o grande foco do livro é a situação política do Brasil que
vai do fim do Império aos primeiros anos da República. Mesmo dando largo espaço
a um tema pouco interessante para mim, o livro surpreendentemente conseguiu
prender minha atenção, pois era visível a preocupação do autor em manter um
equilíbrio entre a política e os elementos mais romanescos da trama.
No centro da
narrativa temos Guilhermina, a marquesa de Uberaba. Ela é sem dúvida a
personagem mais interessante do livro, além de ser uma das poucas por quem
alimentei alguma simpatia. Após ser educada num convento, Guilhermina, por
arranjo do pai, casa-se com o coronel João Francisco, um negociante em
ascensão. Ela e o esposo são mestiços, mas, por esbanjarem uma considerável
fortuna, não deparam dificuldades em se relacionarem socialmente.
Guilhermina
é uma mulher forte, ativa, sonhadora e ambiciosa. Através de sua inteligência,
o marido ascende cada vez mais socialmente e ambos se tornam marqueses. Somando
a fortuna herdada do pai com o pecúlio de João Francisco, os marqueses estão
entre as famílias mais ricas do Rio de Janeiro.
Há contudo
um véu de tristeza que nubla a felicidade do casal: eles não conseguem ter
filhos sadios, e todos acabam morrendo precocemente. Para suprir seus
frustrados sonhos maternais, a marquesa adota Oscar, um órfão promissor, que
recebe todas as vantagens de uma boa educação, tornando-se um marinheiro de
destaque, o que lhe confere o epíteto carinhoso de “almirante” do próprio
imperador.
Anos mais
tarde, uma nova perda irreparável abala a felicidade da marquesa: falece João
Francisco. Viúva e com seu único filho distante, a marquesa de Uberaba, para
vencer a solidão, regressa ao primitivo sítio mineiro do finado esposo e
propõe-se a realizar um grande projeto: a construção de um núcleo agrícola
totalmente modernizado e sem trabalho escravo.
Esse é o
primeiro ponto alto do livro que, a meu ver, poderia ter sido melhor explorado.
O capítulo que narra a chegada dos imigrantes que trabalhariam no núcleo é um
dos mais interessantes de toda a obra. De fato, é impressionante a coragem e a
pertinácia da marquesa em fazer acontecer o seu sonhado projeto a todo custo,
mesmo contra a opinião pública, que considera tudo aquilo uma loucura.
Mas eis que
chega o dia 15 de novembro de 1889. A marquesa de Uberaba, monarquista confessa,
sofre novo abalo com o fantasma da República que se aproxima. É com grande
pesar que ela vê seus amigos próximos tendo que se curvar ao novo regime pelo
bem de suas famílias. O próprio Oscar, seu filho do coração, parece render-se
ao novo modelo político, desinteressado por manifestar resistência.
Oscar,
personagem aludido pelo título do romance, é que não me pareceu bem delineado.
Trata-se de um homem grave, disciplinado e inteiramente focado na própria
carreira. Nos capítulos iniciais fica subentendido que ele se envolveria com
uma das filhas de dona Eugênia, uma amiga da marquesa.
A propósito
dessas meninas, as três também não foram devidamente exploradas pelo autor.
Amélia, a mais velha, de idade um tanto avançada para o casamento, é beata e
recatada, parecendo assim a candidata mais condizente com o temperamento de
Oscar. Laura, a irmã do meio, é praticamente invisível no romance, e o que
sabemos dela diz respeito à sua ingenuidade e modos infantis. Hortênsia, a
caçula, é uma menina sonhadora e ambiciosa, além de ser uma espécie de pupila
da marquesa.
Domingos
Olímpio enriquece o livro com outros personagens que contribuem com o andamento
da narrativa. O autor, neste romance, dispõe de uma galeria de figuras
excelentes, com a qual poderia ter realizado um trabalho significativamente
melhor. Tive essa impressão de que O Almirante
foi escrito mais “ao correr da pena”, sem as preocupações estéticas que vemos
em Luzia-Homem.
O romance
contém personagens e episódios que poderiam ter sido melhor aproveitados, visto
que espaço não faltou à obra, que é demasiado longa. Senti uma falta de
equilíbrio no tratamento dado aos temas, como também aos personagens de
primeiro plano. O próprio Oscar é bastante invisível na primeira metade do
livro, por exemplo.
Por falar
nessa primeira metade, a ênfase dada ao contexto político é um tanto exaustiva,
especialmente nos longos debates que se dão nos serões da marquesa. Como já
mencionado, o autor, ainda assim, estabelece uma dinâmica que não torna a
leitura cansativa. Todavia, pareceu-me incoerente que, na segunda metade da
obra, essa marca tão característica e identitária do romance fosse quase que
inteiramente apagada, uma vez que o foco muda para os aspectos romanescos que
vinham sendo moldados, a conta-gotas, desde os capítulos iniciais.
Em resumo, O Almirante é um livro que, com sua
incrível galeria de personagens e seus vários momentos e episódios dramáticos,
poderia ter rendido uma obra melhor acabada ou pelo menos melhor acomodada nos
seus trinta capítulos. O fator tempo deve ter pesado bastante em sua
composição. Mas, tendo em vista que Domingos Olímpio infelizmente não nos
deixou outros títulos, eu já me senti presenteado pela oportunidade de ter essa
experiência que me mostrou uma nova faceta do inesquecível autor de Luzia-Homem.
Avaliação: ★★★
Daniel Coutinho
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