sábado, 15 de fevereiro de 2025

Em Surdina, de Lúcia Miguel Pereira - RESENHA #215

Já conhecia o trabalho da escritora Lúcia Miguel Pereira (1901-1959) como crítica literária, mas não imaginava a grandeza de sua prosa de ficção. Dentre os muitos títulos publicados pela finada “Coleção Saraiva”, o romance Em Surdina havia figurado num dos primeiros anos. A sinopse sugeria uma narrativa interessante, e eu certamente não poderia deixá-la passar.

Em Surdina (1933) nos apresenta Cecília, uma jovem aparentemente simples, mas que guardava consigo pensamentos profundos sobre a vida. Ao concluir a escola, a expectativa da família pelo seu casamento a deixa desconfortável e reflexiva sobre seus próprios interesses e seu lugar no mundo.

Logo no começo do livro, Cecília rejeita um pretendente. Ela se justifica com a desculpa de que o moço em questão não atendia às suas exigências intelectuais, mas intimamente ela reconhece que simplesmente não está interessada.

O interesse maior de Cecília, nesse ponto de sua vida, é descobrir um sentido para sua existência. Ao passar, um dia, em frente a antiga escola, ela tem um insight que a faz repensar sobre os planos e sonhos da juventude. Ela não vê a irmã mais velha, Heloísa, como um modelo inspirador. Os papéis de esposa e mãe não lhe deslumbram como a tantas outras mulheres.

Um vazio perturbador faz com que ela busque uma ocupação; mas é logo desestimulada pelo pai, Dr. Vieira, que rejeita a ajuda da filha na organização dos papéis relacionados aos seus pacientes. O pai de Cecília também não a encoraja a buscar trabalho, o que, para ele, seria vergonhoso para uma moça de família da classe média.

Desocupada e livre de maiores obrigações, Cecília vê sua vida passar em surdina entre os membros da família, os quais ela observa de perto, analítica. O irmão mais velho, Cláudio, é um homem calculista, cujo maior prazer é especular no mercado financeiro. Os irmãos gêmeos Antônio e João estudam engenharia, mas apenas o primeiro demonstra vocação. João descobre-se um homem de ideias políticas e literárias e, contra a vontade do pai, aspira por ser escritor.

Os demais parentes não são menos interessantes. Tia Marina, que vive com a família, é uma solteirona cética e metódica; e por diversas vezes é apontada como um fantasma do que Cecília poderia se tornar. Os parentes da mãe falecida também são contemplados. A avó materna, viúva, embora muito amorosa com os netos, alimenta uma intriga com o Dr. Vieira. Tia Sinhazinha é uma figura polêmica, perante a família, por ousar deixar o marido que a fazia infeliz.

Assim, a vida de Cecília vai passando entre divertimentos frívolos e cuidados com a família, sobretudo com Baby, a filha mais velha de Heloísa. O aparecimento de Paulo, sócio de Cláudio, no entanto, confere uma nova alegria aos dias da jovem solteira. Paulo e Cecília tornam-se grandes amigos e cultivam uma admiração mútua, mas ela não o vê como um marido em potencial. Paulo é descrito como um homem de poucos atrativos físicos; e, a esse tempo, Cecília demonstra interesse amoroso por um tenente, mas sem ter com este a conexão espiritual compartilhada com o sócio do irmão.

Essa ideia geral que esbocei da substância do livro já deve revelar, em parte, as qualidades inegáveis de Em Surdina. Trata-se de um romance vívido, com tipos incrivelmente reais vivendo suas vidas cheias de erros e acertos, como todos nós. Os acontecimentos se dão de forma natural e espontânea, e tudo na obra parece crível e real.

A autora, em diversos momentos da narrativa, propõe a análise, a reflexão, mas a densidade do texto não apela para rebuscamentos e jogos de palavras desnecessários. A linguagem é sempre limpa e objetiva, como se fosse um propósito de Lúcia promover a compreensão dos dilemas de Cecília. Uma vez que nenhum personagem parece compreendê-la, cabe ao leitor consumar esse entendimento.

Faço apenas uma ressalva quanto à queda de ritmo na segunda metade, especificamente após o episódio da epidemia de gripe. A narrativa nem de longe parece ruim nesses momentos, mas perde um pouco do brilho inicial. Em Surdina, como um todo, é uma obra excelente, embora subestimada em nosso tempo.

Avaliação: ★★★★

Daniel Coutinho

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