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Li por esta que é a 1ª edição da obra, de 1914. |
Rei
Negro é o que se pode chamar romance anacrônico. Publicado num período
comumente denominado Pré-modernismo, o livro de Coelho Neto seguia na contramão
do que estava em voga na época; por esse motivo, alguns críticos o classificam
de neoparnasiano. Tal estilo foi alvo de crítica ferrenha por parte de autores
como Lima Barreto e Oswald de Andrade. A preocupação do autor com a forma chega
a ser tão exagerada, que chega a constituir o primeiro plano da essência de sua
obra, em detrimento do enredo e demais elementos da narrativa. É como se,
indiferente à fotografia, ele estivesse obcecado pela moldura. Essa obsessão
acaba prejudicando a constituição do romance que, sufocado por tantos atavios,
não caminha, arrasta-se.
Não saberia dizer se o senhor Coelho Neto era
desses que traziam um dicionário sempre à cabeceira ou se ele mesmo era um
dicionário ambulante; o certo é que, dono de um vocabulário de incalculável
dimensão (sobretudo pelos arcaísmos), ele empenha-se por fazer uso constante
desta habilidade excepcional. Para que não digam que estou exagerando, aí vai
um trechinho: “Era o luar que penetrava o interior da espessura coando-se pelos
raros, descendo em cheio pelas abertas, aqui em fita, além alagando a jorros,
ou amiudado em nimbos e em estrias que amedalhavam, reticulavam o ândito
tenebroso.” Hã? E que me dizem desse: “Crebro, aos estalidos, pingava o
estilicídio das folhas róridas; pipilos denunciavam o sonho dos ninhos e,
alumiando a treva ferrugínea, em ronda, os pirilampos multiplicavam-se.”? Ahã
rs! Só para constar: mais da metade do livro mantém-se nesse nível.
É natural encontrarmos na prosa regionalista um
vocabulário peculiar que caracterize com realismo a região ambientada. Isso
justificaria em parte nosso romance em questão, não fosse o fato de a maioria
dos termos estranhos utilizados não serem exatamente típicos. O excesso de
formalismos é um recurso visivelmente proposital. Digam o que quiserem, o
estilo de Coelho Neto granjeou-lhe respeito e renome não só no Brasil, como em
Portugal, onde a maioria de seus livros eram editados. Em razão desse sucesso,
ele publicou quase uma centena de livros, entre romances, coletâneas de contos
e crônicas, além de várias peças teatrais. Os requintes de sua escrita,
contudo, não lhe asseguraram a permanência e, hoje, praticamente nem se sabe
quem foi Coelho Neto. Até onde sei, só algumas de suas crônicas continuam sendo
editadas.
Mas falemos agora de Rei Negro. Como já disse, o enredo e demais elementos narrativos
sofrem em favor da forma minuciosamente elaborada. A questão racial é o único
tema que consegue se sobressair a partir da figura de Macambira, o filho de
Munza, reverenciado entre os negros. Trata-se do escravo de confiança de Manuel
Gandra, o proprietário da fazenda Cachoeira. Responsável pelas transações de
compra e venda de mercadorias, Macambira é temido por sua valentia e pela
superioridade que lhe atribuem, por ser uma espécie de príncipe da raça. De
modos reservados, sua única amizade é Balbina, velha mandingueira, que vive a
lhe contar as glórias de seus antepassados da África.
Macambira, fiel à sua tradição, sente-se um
defensor dos escravos, ao mesmo tempo que reprova-lhes as atitudes, especialmente
as relacionadas à concupiscência. Na medida do possível, tenta impedir a
corrupção de sua gente, sobretudo das mulheres que, muitas vezes, ainda
impúberes, eram vítimas de abuso sexual. Manuel Gandra e seu filho Julinho
dispunham das escravas a seu bel-prazer e indiscriminadamente. Julinho,
contudo, acaba tendo algumas de suas aventuras malogradas, em razão da
intervenção de Macambira, o que gera uma grande antipatia no garoto em relação
ao negro.
Sabendo que Macambira ia juntando considerável
pecúlio e temendo que o negro comprasse sua liberdade, Manuel Gandra decide
casá-lo, para mantê-lo seguro na fazenda. Todos acreditavam que o escravo era
averso às mulheres, por sua postura sempre austera, e atribuíam o fato às
mandingas da Balbina; mas a verdade é que ele dedicava um amor ideal à mucama
Lúcia, uma escrava quase branca, que gozava um tratamento especial na fazenda,
além de possuir alguma instrução. Gandra, percebendo os sentimentos de
Macambira, sugere o casamento, para a indignação de muitos, inclusive de
Julinho.
O sinhozinho, querendo desforrar-se com o
interceptor de suas aventuras, prepara uma armadilha e estupra Lúcia.
Envergonhada, a mucama não tem coragem de relatar a ocorrência, consciente da
inutilidade da delação, fundamentada em outras situações idênticas. O casamento
é realizado e, pouco depois, Lúcia engravida. Temendo que o filho seja de
Julinho, a mucama sofre horrivelmente. Macambira estava fora quando então nasce
a criança, de fato, branca. A desesperação toma conta de Lúcia, que teme morrer
ás mãos do marido quando este descobrisse; decide confessar tudo à Balbina, mas
não resiste a uma vertigem e morre.
Balbina põe Manuel Gandra a par de tudo, e este,
em defesa do filho, trata do enterro de Lúcia e exige o sumiço da criança. Sua
primeira ideia é a de matar, mas um escrúpulo o convence a enjeitar a criança
na porta de uma igreja, missão esta atribuída a Balbina. Uma grande tempestade
impede a tarefa, circunstância que é encarada supersticiosamente pela
mandingueira, que entende o imprevisto como obra da falecida. Balbina decide
esconder a criança no seu rancho, mas quando Macambira retorna, acaba
descobrindo tudo. O escravo decide comprar sua liberdade e abandonar a fazenda,
para poupar-se da vergonha, mas Gandra convence-lhe a ficar, tentando sempre
justificar o filho. Macambira, contudo, perdendo a razão, prepara uma tocaia na
qual Julinho acaba assassinado por ele.
Todo esse dramático enredo é contado da maneira
mais arrastada possível, combinado com descrições minuciosas derramadas em
páginas e páginas. As descrições são por vezes tão excessivas que não poucas
vezes o leitor precisa parar para se situar novamente na trama. Tudo é contado
também com bastante distância, de maneira que muito do que atribuímos aos
personagens provém do que fica subentendido, pois o autor não se dedica muito
ao estudo de seus tipos, o que faz com que o leitor não simpatize muito com
eles. O autor, que não dedica atenção aos personagens centrais, importa-se bem
menos com os secundários; à exceção de Donária, a Vaca Brava, a participação
dos outros é praticamente nula.
Rei
Negro é um livro que, não obstante não ser muito longo, poderia
ser bem menor. Talvez se ao invés de tantas descrições “despropositadas”,
tivéssemos um desenvolvimento melhor da trama, como também dos próprios
personagens, o romance renderia uma experiência mais apreciável. A obra, sem
dúvida, toca em diversas temáticas que mereciam uma atenção mais cuidadosa. Não
quero desmerecer a espantosa perícia estilística do autor, mas, honestamente:
há tanta coisa melhor rs!
Avaliação: ★★
Daniel Coutinho
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