Sou de uma
geração da qual o navio Poseidon fazia parte do imaginário popular. Lembro de
ter assistido pelo menos três versões cinematográficas da história do
transatlântico que ficou à deriva no oceano, virado de ponta-cabeça. Mas
somente depois de adulto descobri que todas aquelas histórias provinham de um
romance norte-americano do escritor Paul Gallico, obra que, aliás, tendo sido
um sucesso na época de sua publicação (1969), está hoje bastante esquecida.
Depois de finalmente lê-la, consigo entender o porquê.
Iniciei a
leitura de Tragédia no Mar (minha
tradução, de Primavera das Neves, optou por este título) bastante empolgado com
o estilo da narrativa, mas principalmente com a galeria de personagens criada
pelo autor. Ali estavam, logo nos primeiros capítulos, todos os ingredientes
que constituem os grandes livros de aventura: uma premissa fantástica,
personagens misteriosos que escondem segredos, um casalzinho que se forma em
meio ao caos, figuras simpáticas e de alívio cômico, além de muitos outros elementos
que despertam a curiosidade e o interesse do leitor.
Sobre a
premissa, em linhas gerais, o livro conta a história de um luxuoso
transatlântico que, durante um cruzeiro que deveria compreender o natal e o
réveillon, é atingido por um maremoto que o faz virar de ponta-cabeça. Os
vários espaços vazios em compartimentos internos, no entanto, fazem com que o
navio permaneça flutuando com o fundo do casco acima da superfície.
Uma tragédia
de tal proporção, como se supõe, faz muitas vítimas instantaneamente. Quanto
aos sobreviventes, além de traumatizados, estão todos muito confusos e
indecisos quanto ao que fazer dali por diante. Dentre eles está o reverendo
Scott, um dos primeiros a manifestar espírito de liderança, com o qual
influenciará o pequeno grupo que vamos acompanhar durante toda a narrativa.
Julgo
pertinente apresentar essa galeria de personagens, porque de fato ela constitui
um dos maiores acertos do romance. O reverendo Frank Scott, por si só, já é um
tipo muito misterioso. Proveniente de família rica e com um passado laureado de
méritos no mundo dos esportes, ele abandona tudo para seguir carreira
religiosa. Os demais passageiros não compreendem ao certo as razões que o
levaram a fazer o cruzeiro do Poseidon, mas acreditam que o fato esteja ligado
ao boato de que o reverendo havia sido desligado da igreja à qual pertencia.
Temos em
seguida os Shelby, que são aparentemente uma família perfeita e exemplar.
Richard e Jane parecem ser um casal modelo, pais de dois filhos muito
promissores: a bela Susan e o pequeno Robin, espécie de menino-prodígio com
inteligência acima da média. Ao longo do livro, porém, vamos descobrindo uma
esposa frustrada e insatisfeita com um marido que ela julgava covarde e
pusilânime de caráter.
O casal
Rogo, por sua vez, não é menos interessante. Mike Rogo é um detetive da polícia
americana que está de férias com a esposa Linda, mas todos desconfiam que ele
esteja realizando alguma investigação secreta. Linda Rogo é uma mulher
desprezível, que está sempre xingando todo mundo, inclusive o próprio marido, a
quem culpa por ter abandonado a carreira de atriz.
Temos também
o casal Rosen, que compreende o núcleo cômico de que já falei. Manny e Belle
Rosen são comerciantes aposentados. Belle, em sua juventude, fora campeã de
natação, mas, depois do casamento, dedicada à vida doméstica, foi ganhando cada
vez mais peso. Além de serem naturalmente engraçados, os Rosen ganham
facilmente a simpatia do leitor, mas justamente por isso também rendem cenas em
que ficamos com o coração na mão.
James Martin
é um empresário americano de alfaiataria masculina. Casado, ele está curtindo
férias com sua amante. Após a tragédia, Martin entra numa crise de consciência,
atormentado pela ideia de que não merecia ter sobrevivido. Mary Kinsale é uma
incógnita. Trata-se de uma solteirona de poucas palavras, de caráter religioso
e de muita discrição.
Tony Bates é
um alcóolatra inglês, que está sempre bebendo na companhia de Pamela, que ele
conheceu no navio e que, assim como ele, é capaz de beber descontroladamente
sem se embriagar. Junto a eles está o americano solteirão Hubie Muller, um
homem descrente no amor, mas que acabará apaixonado por Nonnie, uma dançarina
que também sobrevive à tragédia. Fechando o grupo, temos o turco Kemal, membro
da tripulação, que decide seguir o reverendo Scott em seu plano de salvamento.
A fórmula
praticada por Gallico é fazer esse grupo avançar sempre acima pelos deques
invertidos do Poseidon. Cada deque oferece um novo desafio que precisará ser
vencido, e essa fórmula vai se repetindo por quase todo o livro, interrompida
ocasionalmente por outras circunstâncias. Essa repetição às vezes torna-se um
pouco cansativa, mas este não é nem de longe o problema mais grave do livro.
Na segunda
metade da obra, infelizmente, o autor parece perder a mão no desenvolvimento da
narrativa. Talvez na tentativa de surpreender o leitor com cenas chocantes,
algumas situações saem por demais exageradas e até incoerentes. Acredito que o
livro desanda de fato a partir de uma cena de estupro no capítulo XIII. Além do
horror da cena, o mais difícil de digerir é o desenrolar estranhamente
inusitado do episódio, onde os papéis se invertem e temos a vítima consolando o
agressor.
Como se não
bastasse essa situação inconcebível e repugnante, o autor consegue ir além ao
criar uma cena de suicídio que me pareceu bastante incoerente. Dada a
importância do personagem que se suicida e levando-se em conta a maneira súbita
como tudo ocorre, a cena beira o ridículo, de tão improvável. A narrativa, a
partir daí, fica insustentável, tornando difícil e arrastada a leitura dos
capítulos finais.
O último
capítulo, finalmente, ainda traz a cereja do bolo: a constatação de que todo o
sofrimento vivido pelos personagens poderia ter sido diminuído se outras
escolhas tivessem sido feitas. E se acham que essa novela não pode ficar pior,
o livro termina com a vítima de estupro desejando ficar grávida do seu
agressor. Sim, você não leu errado.
Esses
momentos desagradáveis da segunda metade de Tragédia
no Mar fizeram-me querer lançar o livro pela janela, não nego; mas não
posso negar o grau de envolvimento que a narrativa alcança em mais de dois
terços da obra. Foram realmente as escolhas questionáveis do autor que
prejudicaram a constituição do livro, como também sua sobrevivência, já que o
mesmo não envelheceu bem. É lamentável que tenha sido assim, pois Tragédia no Mar perdeu a grande chance de
se tornar um clássico.
Avaliação: ★★★
Daniel Coutinho
***
Instagram:
@autordanielcoutinho
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