O reino da Literatura é habitado por vários
espécimens: temos escritores, leitores, leitores-escritores, escritores-não-leitores
(sim, eles existem!), dentre muitos outros. Mas um tipo que sempre me chamou
bastante atenção é o “aspirante a escritor” e, vez por outra, acabo me
deparando com algum deles.
Todas as pessoas estão capacitadas para a leitura e
a escrita, embora muitas não explorem essas habilidades; havendo o desejo de desenvolvê-las,
um sujeito pode estudar, consultar manuais, fazer cursos, etc., que se tornará
possivelmente um ótimo redator: estará habilitado para a notícia, para a coluna
de fofoca e para publicar livros que trazem títulos como “12 Regras para Alguma
Coisa”.
Se o sujeito, porém, é um “aspirante a escritor de
literatura”, o caso é mais complexo. Isto porque os poetas, ficcionistas,
dramaturgos e artistas em geral já nascem com a centelha da arte crepitando nos
miolos. É quase como uma condição não diagnosticada pela ciência. Na falta
desta centelha, resta ao sujeito arriscar-se num território desconhecido,
contando unicamente com sua boa vontade e talvez com o sonho ou ambição de
tornar-se, por exemplo, um romancista. Daí é que surgem livros como Aguapés
Flutuam na Ribeira (1969), do paulista João de Sousa Ferraz (1903-1988).
O título é dos mais poéticos, sem dúvida, sendo um
excelente chamariz para leitores como eu. Desejando ter uma ideia do livro, busquei
por uma sinopse, mas nada encontrei, nem mesmo nas orelhas do meu exemplar. Parecia
que ninguém no mundo havia lido tal obra. Mas como isso nunca foi um empecilho
para mim, fui descobrir do que se tratava.
Foi com prazer que li o primeiro capítulo de Aguapés
Flutuam na Ribeira. Estava diante de um romance regionalista, gênero pelo
qual sou apaixonado. Mas, logo nos capítulos seguintes, percebi que algo ali
estava errado. Cauteloso, pensei: “Paciência, que, desses quinhentos
personagens, uma dezena ganhará brevemente um desenvolvimento lógico na ‘trama’!”.
O caso é que não houve trama nem desenvolvimento, mas sim outros quinhentos personagens.
Todo mundo já ouviu os pais, os tios ou os avós
entretidos numa conversa longa, na qual citam meio mundo e uma sequência interminável
de fatos desconectados. Aguapés Flutuam na Ribeira seria a transcrição um
tanto floreada de uma dessas conversas. O livro não tem enredo nem
protagonistas definidos, embora o autor gaste mais linhas com certa dúzia de
personagens.
O cenário escolhido é Iporanga, cidadezinha do
interior paulista situada à margem do rio Ribeira de Iguape. Dentre os
personagens mais citados, temos o coronel Quinca Leme, chefe político na
localidade que, logo no início do livro, apropria-se do sítio que pertencia a
um seu antigo devedor, antecipando-se aos Roque, família influente que
rivalizava com os Leme o poder político.
A pista de que o romance se concentraria na disputa
pelo sítio Barra dos Pilões é enganosa. Os Roque reagem pacificamente. Os
capítulos seguintes apresentam simplesmente a descrição dos tipos que habitam
Iporanga, como seus respectivos costumes. O autor retorna aleatoriamente a este
ou àquele personagem, mas sem nunca deixar de trazer diversos figurantes para a
cena.
É possível reconhecer algumas tentativas de enredo
ou desenvolvimento de personagens. O professor Eurípedes Canabrava, por
exemplo, é um recém-chegado que logo se interessa por Leninha, neta de Quinca
Leme. O livro, porém, não traz um único diálogo sequer que desenvolva tal
relação, que mais parece um namoro infantil, cheio de joguinhos sobre quem está
mais interessado.
O que preenche de fato as páginas de Aguapés
são as trivialidades do cotidiano no interior: um pai que vai à escola reclamar
porque o filho foi maltratado, funcionários públicos entretidos em jogos durante
o expediente, a expectativa dos moradores pela chegada do correio, os fandangos
noturnos em casas de reputação duvidosa, os embarques e desembarques na
Ribeira, os festejos religiosos tradicionais, dentre outros episódios do
gênero.
O que vi de positivo, contudo, nesta tentativa de
romance é o olhar sensível do autor para com o cenário. Há uma paixão implícita
nas descrições mais corriqueiras da obra, seja descrevendo o telhado da igreja
matriz ou as dezenas de canoas que colorem a Ribeira de Iguape. Os registros de
costumes e de linguagem também merecem elogio; mas a ausência de trama e de
personagens bem desenvolvidos tornam a leitura arrastada e pouco fluida.
Jamais saberemos as intenções reais do autor de Aguapés
Flutuam na Ribeira. Talvez ele fizesse o livro mais para si mesmo, na
tentativa de registrar seu deslumbramento por uma terra querida, pouco
preocupado com quantos leitores abandonariam o volume às primeiras páginas. No
fim das contas, sinto-me até feliz por ter testemunhado esse deslumbramento.
Avaliação: ★★
Daniel
Coutinho
***
Instagram: @autordanielcoutinho
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